Uma história pouco conhecida: os Estados operários burocráticos do Leste Europeu
O livro de Jan Talpe, Los Estados obreros del glacis, 1 vem suprir uma lacuna importante. Desde a queda do Muro de Berlim e dos anos 1990, o processo da restauração capitalista é um foco de polêmica, em especial no interior da esquerda e entre aqueles que se reivindicam da tradição antistalinista. De sua interpretação,

O livro de Jan Talpe, Los Estados obreros del glacis, 1 vem suprir uma lacuna importante. Desde a queda do Muro de Berlim e dos anos 1990, o processo da restauração capitalista é um foco de polêmica, em especial no interior da esquerda e entre aqueles que se reivindicam da tradição antistalinista. De sua interpretação, decorre toda uma visão da realidade de hoje.
Por: José Welmowicki
As polêmicas concentraram-se no processo da ex-URSS, mas para tirar todas as lições, é necessário analisar os demais países da Europa Oriental que, logo após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazi-fascismo, foram ocupados pelo exército soviético e ficaram sob o comando da burocracia stalinista da URSS, que acabou criando novos Estados operários burocráticos deformados.
Para os stalinistas, é simples. O que aconteceu resume-se a uma derrota do socialismo pela ofensiva esmagadora do capitalismo imperialista, e as massas foram enganadas. Por isso, não defenderam o regime “socialista”, que tinha seus problemas, mas era uma plataforma para o comunismo. Daí viria, segundo eles, a imensa dificuldade do projeto socialista que “ficou sem referências”. Para eles, estamos numa etapa defensiva e é necessário esperar outra etapa ou época em que se retome a capacidade de ofensiva do socialismo, derrotado na ex-URSS e no Leste Europeu.
A maioria da esquerda que não se reivindica stalinista (incluindo aqueles que se reivindicam trotskistas), embora faça críticas muitas vezes duras aos regimes stalinistas, na prática, colocou-se como a ala esquerda desses regimes do chamado “socialismo real”. Isso porque atribuíram a restauração às debilidades do movimento operário e não à ação contrarrevolucionária da burocracia stalinista. Essa posição provinha de um grave erro teórico: consideravam a burocracia como uma camada de dirigentes que, embora fossem algozes do proletariado e da oposição de esquerda, jamais poderiam liderar a restauração por conta de uma suposta “dupla natureza”. Devido a seus interesses materiais associados, a manutenção das bases econômicas sociais do Estado operário, segundo essa visão, essa casta jamais poderia apoiar a restauração capitalista, nem na URSS, nem nos demais países do glacis. Viam a burocracia como uma barreira contra o capitalismo dominante em escala mundial.
Essa era uma tese oposta às conclusões de Trotsky sobre a URSS após a contrarrevolução stalinista e a burocratização. Para Trotsky, como está em seu livro A Revolução Traída, de 1936, e no Programa de Transição, caso não houvesse uma revolução política que derrubasse a burocracia, defendendo as bases sociais e econômicas do Estado operário, a restauração era inevitável.
No entanto, depois do assassinato de Trotsky, muitos dirigentes da jovem direção da IV Internacional do pós-guerra, como seu teórico mais conhecido, Ernest Mandel, caíram no erro de opinar que a burocracia jamais poderia liderar a restauração do capitalismo na URSS ou no Leste Europeu.
Nesse sentido, ignoravam a própria elaboração de Trotsky, que afirmou com toda a nitidez que a partir da burocratização da URSS, exceto se houvesse uma revolução política que a expulsasse do poder, era inevitável que a burocracia conduzisse o Estado operário à restauração do capitalismo.
Fatos esquecidos
O texto de Talpe tem o mérito de estudar com profundidade o que se passou, em particular na região do Leste Europeu. Após a Segunda Guerra Mundial e a vitória das massas e do exército soviético sobre os nazistas e seus aliados, a região esteve sob controle direto das tropas russas e, portanto, da burocracia da URSS. A heroica luta do proletariado russo em Stalingrado – apesar da direção burocrática – durante cinco meses e com o saldo de dois milhões de mortos, levou à vitória nessa batalha decisiva contra o regime de Hitler, que havia sido aliado de Stalin nos primeiros anos do conflito, e permitiu mudar o curso da II Guerra Mundial.
Essa vitória permitiu à burocracia russa “recuperar o prestígio do Kremlin”, negociar com o imperialismo o reconhecimento de sua influência sobre a região, no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, e deixar cair no esquecimento seus acordos com Hitler que levaram à divisão da Polônia entre a URSS e a Alemanha nazista.
A pesquisa de Jan Talpe ajuda a entender com profundidade como se originou o crescente ódio das massas de toda essa região aos ocupantes russos e aos burocratas locais que seguiam suas ordens, e assim entender as raízes das revoluções políticas que se sucederam, embora derrotadas, começando por Berlim Oriental e, depois, na Hungria, na Tchecoslováquia e na Polônia.
Em 1939, Stalin havia feito um pacto de não agressão com Hitler e de divisão de áreas de influência (na Polônia, países bálticos, parte da Romênia e outras regiões) entre os dois países, o que incluía a invasão da Polônia pelos exércitos de Hitler, para ocupar a parte ocidental, e de Stalin para ocupar a parte oriental.
Trotsky viveu esse episódio de invasão da Polônia em setembro de 1939, um pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e de ser assassinado. Assim, pôde deixar expressa sua posição sobre o que aconteceria sobre uma eventual ocupação da URSS nos territórios conquistados pelo Exército Vermelho e, de forma ampla, sobre as consequências da guerra.
Trotsky opinava que o exército de Stalin, ao invadir a Polônia e os outros países, apesar de ter um objetivo contrarrevolucionário, expropriaria a burguesia desses países. Seria obrigado a tomar uma série de medidas progressistas, de caráter socialista, que dariam origem a Estados operários, embora burocratizados, assim como era a URSS.
No entanto, para Trotsky, mesmo que o stalinismo tomasse esse tipo de medidas, que deveriam ser defendidas frente a um possível ataque de Hitler, a invasão do Exército Vermelho a esses países não podia contar com nenhum tipo de apoio dos revolucionários. Nisso, Trotsky era preciso e categórico: “Estivemos e continuamos contra ocupações de novos territórios pelo Kremlin”. 2
Embora o acordo entre Hitler e Stalin tivesse sido rompido em 1941 por Hitler, quando o exército nazista invadiu o território da URSS, essa posição serviria para entender e dar referência ao que se passou no fim da Segunda Guerra Mundial, quando Stalin estabeleceu os acordos com seus novos aliados imperialistas, Inglaterra e Estados Unidos, para estabelecerem as áreas de influência. Os acordos ficaram conhecidos pelos nomes das cidades onde aconteceram as reuniões, Yalta e Potsdam.
O glacis, Estados operários burocráticos sob um regime semelhante a colônias
A partir desses acordos, o Exército Vermelho ocupou grande parte dos países do Leste Europeu e a burguesia foi expropriada nestes Estados. Assim, surgiram os Estados operários burocratizados do Leste Europeu, como previra Trotsky. Do mesmo modo que tinha prognosticado para a URSS sob a burocracia stalinista, aí também se cumpriu o prognóstico de Trotsky de que, se não houvesse a revolução política, a restauração do capitalismo seria inevitável.
Contudo, além dessa ideia geral, era cada dia mais evidente o caráter contrarrevolucionário das burocracias na gestão diária da economia expropriada, no caso dos países do glacis. Eles estavam submetidos a uma dominação semelhante à pilhagem e à dominação colonial que o imperialismo capitalista exerce nos países dominados, bem como tinham seus governos, as instituições jurídicas repressoras e as polícias locais sob o controle direto do Kremlin.
Tudo isso se dava no marco dos acordos de Yalta e Potsdam, no qual a URSS de Stalin comprometeu-se e respeitou de forma escrupulosa o acordo para manter o capitalismo na França, na Itália e na Grécia, instando os partidos comunistas locais a entregarem as armas à burguesia e aceitarem o apoio à “unidade nacional” para reconstituir o Estado burguês. No Ocidente, aceitavam a volta da burguesia local ao poder; no Leste, tinham o comando direto dos Estados para impedir que a mobilização das massas saísse do controle, utilizando as tropas russas para disciplinar as massas libertas do nazismo. E o monopólio do comércio exterior desses países era controlado… pela burocracia russa.
Como escreve Jan Talpe:
“Em uma aliança contrarrevolucionária, o Kremlin e o imperialismo propuseram-se a domar o levante das massas. E a burocracia soviética aproveitou a oportunidade para implementar a pilhagem em grande escala. Para isso, foi capaz de criar um glacis de semicolônias, que descrevemos como “sui generis” porque não havia burguesia no país colonizador. A grande burguesia havia fugido diante do avanço das tropas do Exército Vermelho, abandonando armas e bagagens. Isso permitiu uma pilhagem selvagem no início, levando tudo o que fosse transportável, até mesmo a força de trabalho. Mas uma burguesia local 3 permaneceu e, a longo prazo, o regime teve de ser alinhado com o da URSS por meio da nacionalização da indústria ou, eventualmente, da industrialização do país, com relações de propriedade socialistas e a implementação da coletivização agrária. O controle sobre o que restava da burguesia e da pequena burguesia foi facilitado pelo peso do monopólio da força militar e realizado por plenipotenciários, comandados de Moscou, com as tropas russas. Em geral, Stalin garantiu o controle sobre o aparato de repressão (o Ministério do Interior) e “fundiu” os partidos da social-democracia com o que restava dos partidos comunistas.”
Com o CAME, 4 o Kremlin pôde assegurar um “monopólio do comércio exterior” particular, controlado desde Moscou. E, com o tempo, a pilhagem requereria também a planificação central da economia, em que “central” significava não só planos quinquenais, mas também sua sincronização com os do colonizador.”
Jan Talpe fez uma pesquisa detalhada, país por país da região do glacis, que explica como as massas ficavam numa penúria a cada dia que se passava e voltavam-se contra os governantes dos Estados burocráticos totalitários a serviço da burocracia da URSS. As massas desses Estados obtiveram, num primeiro momento, o benefício da expropriação das burguesias locais, base para os novos Estados operários, mas esse benefício era anulado em seguida pela pilhagem dos recursos que ficaram assim disponíveis.
As massas nunca deixaram de lutar contra a tirania dos PCs, que asseguravam e impunham essa rapina. Essa foi a base das revoluções políticas e das rebeliões parciais em todo o glacis, de 1948 até a década de 1980. Porém, elas foram esmagadas pela repressão local e, quando as forças de repressão local eram ultrapassadas, como na Hungria de 1956 ou na Tchecoslováquia de 1968, foram sustentadas pela intervenção direta das tropas russas.
Assim, com a manutenção das burocracias governantes à cabeça desses Estados, verdadeiras satrapias 5 do Kremlin, todos marchavam cada vez mais para a restauração capitalista.
A burocracia pregava que caminhava para o socialismo enquanto impulsionava medidas que alimentavam a restauração capitalista
Como Talpe demonstra, o resultado da permanência da burocracia foi o retrocesso cada vez maior da situação da economia e o aumento da penúria dos trabalhadores e da repressão. Assim, as burocracias iam abrindo o caminho para a volta do capitalismo. Ela tratava de cobrir a pilhagem com o nome de “socialismo”, inclusive criando novas “Constituições” que davam uma roupagem “socialista” ao país.
Como diz Talpe:
“Mas, mesmo nesses casos, para cada Estado era sempre uma questão de “socialismo em seu próprio país”, em um mundo de “coexistência” e “paz” entre “estados”, independentemente de sua cor. E, em última análise, “socialismo” era um termo que cobria a “lealdade ao Kremlin”, e a acusação de “capitalista” era uma denúncia de infidelidade a ele.”
Essa colaboração contrarrevolucionária do Kremlin para controlar o ascenso das massas não anulava a política do imperialismo para recuperar o controle direto sobre a totalidade da economia mundial. A partir da crise mundial dos anos 1970, as possibilidades do Kremlin de defender suas aquisições coloniais foram se reduzindo. O imperialismo passou a competir de forma direta para assumir o papel de colonizador. Assim, encontramos o fenômeno de países como Romênia e Polônia, já no início dos anos 1980, como membros dos organismos imperialistas de dominação econômica, como o FMI, submeterem-se a seu controle e terem dívidas externas escorchantes junto aos bancos ocidentais.
Como analisa Talpe em seu livro, o chamado “socialismo num só país”, naquele momento estendido a vários “países sós”, abriu o campo para que o imperialismo recuperasse sua hegemonia em todos eles. Quando a burocracia russa passou a abandonar de vez as bases da grande conquista da Revolução de Outubro na URSS, teve de ceder suas semicolônias também, uma após a outra, aos novos senhores. Esses países deixaram de ser Estados operários – sem, por isso, sair do status de semicolônias. Ao contrário, desceram mais um degrau e passaram a ser semicolônias diretas do imperialismo. Sua situação deteriorava-se a cada dia, mostrando que o capitalismo não dá qualquer saída a esses povos.
Lições para o futuro
A leitura do livro de Jan Talpe pode ajudar a entender o papel criminoso do stalinismo no Leste Europeu. Mostra como ele foi o responsável pela pilhagem de toda a região e por preparar o retorno do capitalismo, reprimindo de forma selvagem as revoluções que tentaram reverter essa situação, impondo derrotas sangrentas que deixaram o terreno aberto para a ofensiva restauracionista e para a submissão direta ao imperialismo e o desgaste profundo da ideia de socialismo em toda a área.
Cabe aos revolucionários de hoje estudar essa experiência para se armarem para combater a propaganda imperialista que diz que o “socialismo morreu no Leste”, contestar as propostas dos stalinistas e de seus epígonos e, assim, apresentar uma alternativa oposta pelo vértice ao stalinismo em todas suas variantes, que diga claramente que o stalinismo não tem a nada a ver com o socialismo e com a revolução operária mundial.
Passados 30 anos da queda do muro de Berlim, o livro de Jan Talpe chega em boa hora para subsidiar essa discussão tão necessária.
Notas:
- Glacis é uma expressão usada no fim da Segunda Guerra para descrever a região entre o antigo território da Alemanha e a URSS que, na visão de Stalin, serviria de zona de proteção para impedir que a Alemanha pudesse atacar militarmente o território soviético. Correspondia aos territórios ocupados pelo Exército Vermelho no fim da guerra e incluía a parte oriental da Alemanha, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia etc. ↩︎
- TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo. São Paulo: Proposta Editorial, p. 34. ↩︎
- Jan Talpe se refere a um curto período em que ainda havia uma burguesia local que, logo em seguida, foi expropriada pela burocracia russa. ↩︎
- CAME era a sigla do Conselho de Ajuda Mútua Econômica, cuja abreviação em inglês era Comecon. Era apresentado pela burocracia stalinista como uma organização de cooperação econômica formada a partir da URSS pelos diversos países do “campo socialista”. Seus objetivos declarados eram fomentar as relações comerciais entre os Estados membros, como um contraponto aos organismos econômicos internacionais da economia capitalista, assim como apresentar uma alternativa ao Plano Marshall desenvolvido pelos Estados Unidos para a reorganização da economia europeia após a Segunda Guerra Mundial. Na prática, serviu para impor as decisões da burocracia russa no campo do comércio e do planejamento econômico aos países que dele faziam parte. ↩︎
- Satrapias eram as províncias do primeiro Império Persa. Cada satrapia era governada por um sátrapa. As funções deste eram basicamente recolher impostos, reprimir e recrutar homens para o exército. ↩︎
Publicado em novembro de 2019 na revista Marxismo Vivo N. 14