A 70 anos da Nakba: debate sobre a questão nacional

Aos 70 anos da proclamação do Estado de Israel, que para os palestinos significou a Nakba (catástrofe), é necessário fazer uma discussão teórica e programática sobre as visões fundamentais relacionadas. Por: José Welmowicki Começamos pelos fundamentos do sionismo, a corrente política que produziu essa catástrofe – a criação de um Estado fundado sob o pretexto

Aos 70 anos da proclamação do Estado de Israel, que para os palestinos significou a Nakba (catástrofe), é necessário fazer uma discussão teórica e programática sobre as visões fundamentais relacionadas.

Por: José Welmowicki

Começamos pelos fundamentos do sionismo, a corrente política que produziu essa catástrofe – a criação de um Estado fundado sob o pretexto de abrigar o povo judeu, que sempre foi baseado numa definição racial excludente. Essa definição, na prática, necessariamente geraria uma situação catastrófica, pois tinha como pressuposto que a maioria da população desse território, a Palestina, deveria ser judia. Se a ampla maioria era árabe, como tornar realidade esse pressuposto básico do sionismo? Isso só seria possível se fosse garantido aos judeus essa maioria, ou seja, se se expulsasse a maioria da população existente, palestinos, e se garantisse que eles não poderiam voltar.

A Nakba não foi o produto fortuito de uma guerra que estalou devido à reação dos governos “feudais” árabes, como sempre afirmaram os líderes sionistas, que até hoje chamam essa operação de Guerra da Independência, mas sim o resultado de uma operação de limpeza étnica autorizada pela recomendação de partilha da ONU de 1947. Essa operação foi planejada com várias fases, para garantir que os árabes residentes há séculos no território do antigo mandato do imperialismo inglês sobre a Palestina fossem retirados rapidamente, para permitir que os judeus se tornassem franca maioria. O planejamento minucioso dessa operação pelo quartel-general sionista encabeçado por David Ben Gurion está muito bem documentado no livro A limpeza étnica da Palestina, de Ilan Pappé, historiador israelense que teve acesso aos arquivos e pôde revelar os detalhes em toda sua extensão, os quais desmentem, uma a uma, as inúmeras versões difundidas pelos que hoje governam o Estado de Israel.

A evolução desse Estado, seu caráter racista de enclave militar aliado do imperialismo e potência dominante, hoje os EUA, sua completa impossibilidade de ter uma evolução democrática ou de aceitar uma solução do tipo “dois estados” que fosse realmente em igualdade de condições, tem sua base teórica e programática na própria concepção elaborada pelo fundador do sionismo político, Theodor Herzl, desde sua organização no final do século XIX.

Nestes artigos, temos o objetivo de confrontar essas bases, mostrar como os marxistas da III e da IV Internacionais responderam e previram sua evolução e qual programa apresentavam em contraposição ao sionismo e, mais tarde, à sua concretização, o Estado de Israel. A história dos 70 anos que se seguiram à criação do Estado de Israel e a realidade atual na Palestina permitem confirmar a visão marxista revolucionária e a luta contra o sionismo e o Estado, que é sua expressão e segue aplicando a limpeza étnica até hoje. 

A origem da questão judaica

Abraham de Leon foi um jovem dirigente que rompeu com o sionismo (grupo Hashomer Hatzair) e aderiu à IV Internacional às vésperas da II Guerra Mundial. Escreveu um texto que teve um mérito enorme: aplicar o marxismo para entender a questão judaica. Frente às explicações do sionismo ou da religião, ele atribuía a especificidade do judeu, sua localização, a perseguição da qual era vítima, não à religião nem a uma essência genética racial, mas às condições materiais com as quais se inseria na realidade econômica e social em que vivia. Em seu livro A concepção materialista da questão judaica, localizou quais eram as bases para entender a especificidade dos judeus. Ela estaria vinculada ao papel assumido pelos judeus nas sociedades pré-capitalistas, de comerciantes e usurários, nas quais o capital ainda não dominava em forma plena. Sobre essa base, teria se constituído uma superestrutura cultural e uma religião adequada a esse papel. Formara-se, assim, um “povo-classe”.

Embora se possa questionar a aplicação tão generalizada da tese de Leon, essa localização é chave para se entender – em particular para a Europa feudal – como os judeus tinham um papel de intermediários, no comércio e na usura, para lidar com o dinheiro e estavam sempre na linha de confronto quando os senhores queriam colocar um bode expiatório para desviar a indignação popular contra a miséria social reinante. Na Europa Oriental, em especial onde havia uma concentração de judeus “asquenazes” com esse papel, encontramos a discriminação, os guetos, a grande base do antissemitismo moderno.

Para comprovar, porém, que esse não era um destino inelutável nem fruto da religião, houve comunidades judaicas que ganharam igualdade de direitos já no século 19: na Europa Ocidental, após a revolução francesa e no governo de Napoleão Bonaparte, os judeus foram emancipados, e as ideias de liberdade da Revolução Francesa estenderam-se a eles. Napoleão suspendeu velhas leis que os restringiam a residir em guetos, bem como leis que limitavam os direitos dos judeus à propriedade, ao culto e a certas ocupações. 

O sionismo

O sionismo surgiu como um movimento baseado numa falsa teoria e numa falsa visão da história. Partia de um problema grave: a perseguição aos judeus, nessa época espalhados por vários países, reprimidos e perseguidos, em especial na “terra Yidish” (onde se falava o ídiche, na Europa Oriental). Contudo, atribuía todo o problema a uma incompatibilidade de convivência originada pela religião ou pela raça e, por isso, a tese do sionismo baseava-se em que só havia uma saída para os judeus de todo o mundo: isolar-se numa nação-território em que fossem maioria exclusiva e permanente.

Nesse primeiro momento, virada do século XX até os anos 1930, os sionistas não conseguiram agrupar a maioria das comunidades judaicas. Tinham que disputar com os marxistas que defendiam o socialismo e o fim da discriminação a todos os oprimidos e que se fortaleceram quando a revolução russa derrubou o czarismo e instalou o primeiro Estado operário. Sua posição em defesa da imigração para a Palestina não encontrou eco importante até os anos 1930 e o surgimento do nazismo, além do retrocesso stalinista na URSS.

As alas do sionismo 

O sionismo dito socialista era um movimento com uma aparência popular e social, devido ao fato das primeiras camadas de judeus que imigraram para a Palestina no século XX serem oriundos da Europa oriental e influenciados por movimentos socialistas e sindicais. Porém, ao assumirem a posição sionista, voltaram-se contra qualquer unidade com os trabalhadores já residentes lá, os palestinos.

Essa geração produziu a primeira liderança do sionismo na Palestina. Dela viriam os partidos que encabeçam Israel, como o Mapai e suas rupturas, até conformar-se, mais tarde, o Partido Trabalhista. Eles organizaram a Histadrut, que ainda hoje se intitula central sindical, mas, na verdade, é uma organização que foi criada para assegurar que os empresários judeus só empregassem trabalhadores judeus e para separar completamente esses últimos dos trabalhadores palestinos.

Os kibutzim são apresentados como comunidades coletivistas, mas, na verdade, são colônias a serviço da expansão e da defesa dos territórios ocupados pelos agricultores judeus, que também não admitem nenhuma coexistência ou associação com os agricultores árabes. Assim, o sionismo socialista, ao invés de lutar por “proletários do mundo, uni-vos”, organizou-se para dividir proletários judeus e árabes.

Jabotinsky, o fundador da corrente sionista revisionista e autor de A muralha de ferro, tinha uma posição racista: dizia que era impossível a assimilação entre judeus e outras raças devido a um problema de sangue. Para ele, a preservação da integridade nacional futura do estado judeu só seria possível se tivesse pureza racial. Assim como os racistas afrikaners do sul da África, considerava os palestinos uma raça inferior com a qual era proibido mesclar-se.

A ideia da “transferência” dos palestinos unia todas as alas – consenso entre a maioria dos sionistas trabalhistas (identificados como esquerda) e a minoria revisionista (direita). Os palestinos deveriam ser expulsos e suas terras, tomadas pela força. Contudo, para fazer isso, os sionistas deviam primeiro adquirir soberania, ou seja, um Estado. O decisivo era que as duas alas coincidissem em que o Estado deveria ser exclusivamente judeu, livre da população árabe autóctone. Daí o slogan “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. Por isso, foi possível a laboristas e revisionistas não só conviverem, como se unirem num só exército e, uma vez instalado o novo Estado, sucederem-se no exercício do governo, sem que se possa distinguir nos traços fundamentais as gestões de cada um: no que diz respeito à limpeza étnica, ao papel do exército e da indústria militar e de segurança. Pela mesma razão, a partir dos anos 1980, houve vários governos de coalizão entre trabalhistas e Likud. As diferenças sempre foram de ordem tática, não estratégica.

Esse caráter do sionismo esteve na base da fundação de Israel. Ilan Pappé demonstra de forma exaustiva como houve uma limpeza étnica planejada. Esse plano foi elaborado bem antes e já tinha como meta desalojar a imensa maioria dos palestinos de sua terra. Para isso, o sionismo aproveitou-se da comoção mundial causada pelo genocídio nazista contra o povo judeu para impor a limpeza étnica dos palestinos, que não tinham nenhuma responsabilidade no massacre dos judeus europeus. Para levar a cabo seu plano de implementar seu Estado com maioria judaica pela expulsão da população árabe palestina existente, os sionistas candidataram-se a formar parte ativa na defesa do sistema mundial de dominação e construíram alianças com os imperialismos dominantes.

Israel, um cão de guarda do imperialismo: a dependência profunda dos EUA desde 1948 é cada vez maior

Desde o início do movimento sionista, com Theodor Herzl e suas tratativas com o Kaiser, o czar russo e, a partir da vitória dos impérios inglês e francês na I Guerra Mundial, o sionismo sempre buscou e teve sustentação do imperialismo. A fundação do Estado de Israel, em 1948, só pôde realizar-se devido ao apoio do governo norte-americano. No entanto, foi a partir dos anos 1960 que a relação alcançada com o imperialismo hegemônico, os EUA, tornou-se total e decisiva. Com a consolidação dos EUA como a potência hegemônica indiscutível, os sionistas armaram-se para se tornarem fiéis guardiões da ordem imperialista na região e no mundo. Foi assim na intervenção de tropas israelenses em aliança com os impérios inglês e francês em 1956, em Suez, na guerra de 1967, no papel de perseguição e repressão em todo o Oriente Médio (como no Líbano) e até mesmo na América Central e do Sul na década de 1980-1990. Assim, Israel conseguiu se tornar um país armado até os dentes. Inclusive, é um dos que recebem a última geração dos modernos armamentos dos EUA e é subcontratante de seus monopólios armamentistas. Em especial a partir da Guerra dos Seis Dias, de 1967, essa associação avançou a ponto tal que hoje a principal indústria israelense é armamentista ou vinculada a ela, como a tão proclamada indústria de tecnologia. 1

Desde 2008, qualquer venda de armas dos EUA para outros países na região não pode ser realizada a não ser que os governos provem que não serão usadas contra Israel. Os valores da ajuda militar dos EUA a Israel crescem a cada ano, independentemente de o governo ser democrata ou republicano. No período de Clinton, foi de US$ 26,7 bilhões; no de George Bush, US$ 30 bilhões; no de Obama, US$ 36 bilhões. Uma porção importante da ajuda foi fornecida em forma de acordos de coprodução, como em 2014, em que fabricantes das indústrias militares de Israel e EUA concordaram em trabalhar juntos para desenvolver os foguetes do sistema de defesa de Israel, o Iron Dome.

O papel de Israel na divisão internacional do trabalho tem como centro ser um fornecedor de armamentos e instrutor mundial da segurança empresarial e da repressão aos povos. Vejamos o que diz o texto da Rede Internacional de Judeus Antissionistas:

A habilidade única de Israel em dispersão de multidões, vigilância, desocupações e ocupações militares resultou em sua posição na vanguarda da indústria global da repressão: desenvolve, monta e comercia tecnologia que é utilizada por exércitos e forças policiais ao redor do mundo com o propósito de reprimir. O papel de Israel nessa indústria começou com o exército israelense, que primeiro usou suas armas contra o povo palestino na Palestina histórica e, depois, contra os países vizinhos. Nos últimos anos, conforme cresceu o interesse pela vigilância e pelo controle policial entre os governos do mundo, um serviço privado israelense pôs à prova (no campo) instrumentos que emergiram de ‘segurança doméstica’ e os exportaram de acordo com seu interesse. A indústria inclui agências governamentais, o exército israelense e uma rede de corporações privadas que produziram mais de US$ 2,7 bilhões em 2008.” 2

Esta área econômico-política especial de Israel teve e tem uma presença importante na América Latina. Durante o período das ditaduras do fim dos anos 1970 e anos 1980, Israel forneceu suas armas mais conhecidas, a metralhadora Uzi e o rifle Galil, para os regimentos da morte na Guatemala, para os Contras da Nicarágua e para o Chile de Pinochet. Nesse período, Israel ganhou mais de US$ 1 bilhão com a venda de armamento para as ditaduras da Argentina, do Chile e do Brasil. A ditadura de Pinochet, de 1973 a 1990, comprou armas de dispersão de massas de Israel, incluindo equipamentos adequados para canhões de água.

O próprio Ministério Israelense da Indústria, Comércio e Trabalho publicou em sua página na Internet:

Israel tem mais de 300 empresas de segurança doméstica que exportam uma ampla gama de produtos, serviços e sistemas… Estas soluções nasceram da necessidade de sobrevivência de Israel e amadureceram conforme a realidade das contínuas ameaças terroristas (sic) ao país… Nenhum outro país tem um acúmulo tão grande de polícias, soldados e vigilantes na reserva e nenhum outro país foi capaz de pôr a prova seus sistemas e soluções em tempo real.

O governo israelense e suas corporações cumprem um papel importante na política nacional do Brasil, na dispersão de multidões, nos sistemas de vigilância, nas prisões e nas fronteiras militarizadas. Junto a outras políticas de repressão doméstica, o treinamento da polícia e seu armamento são parte da campanha antifavela do Brasil.3

A companhia israelense Elbit, uma das implicadas na construção do Muro do Apartheid na Palestina, participou no projeto e abasteceu com tecnologia de vigilância o muro fronteiriço entre EUA-México, mais conhecido como o Muro da Morte. 4

O que é Israel hoje? A comparação com a África do Sul 

Na mesma época da fundação do Estado de Israel, foi fundada a África do Sul como Estado racista, branco, apoiado nos colonos afrikaners. Era a mesma base teórica e material do sionismo: um grupo de colonos brancos europeus instalara-se no território africano habitado por uma população negra, e impôs um Estado baseado em leis racistas, o apartheid, excluindo a maioria da população dos direitos, buscando criar um regime permanente que garantisse uma maioria branca às custas de tornar os negros cidadãos confinados em bantustões (reservas nativas), sob repressão fortíssima.

A África do Sul era muito semelhante a Israel. Lá, os negros eram mantidos à força em bantustões. Em Israel, havia as chamadas leis de Regulações Administrativas baseadas nas leis racistas do apartheid da África do Sul. Em Israel, essa lei confinava os palestinos em determinados lugares, dos quais não podiam sair sem ter um passe, e estabelecia zonas proibidas a eles, pois estavam reservadas para a “raça” dominante no Estado, os sionistas. Colocava, ainda, os palestinos à mercê de comissários com plenos poderes para prender, transferir e deportar os habitantes de áreas árabes, tomar posse de qualquer objeto pertencente a um árabe, fazer investidas nas casas a qualquer momento, impor restrições sobre emprego ou negócios, confiscar qualquer terreno ou casa e assim por diante. Violações a essa lei seriam submetidas à jurisdição de tribunais militares. Essa era apenas uma de muitas leis racistas aplicadas aos palestinos.

O papel da África do Sul na repressão aos movimentos negros pela independência na África dos anos 1960-1990 também se assemelha ao papel de Israel como polícia desde sua fundação: enquanto a África do Sul interveio diretamente em Angola, Moçambique, Namíbia e apoiou os racistas da ex-Rodésia, Israel fazia e faz o mesmo na sua região. Por isso, os movimentos antirracistas da África do Sul identificaram-se sempre com a luta dos palestinos. Houve uma colaboração estreita entre a burguesia branca racista sul-africana e a liderança sionista desde 1948. Israel cumpriu o papel de armar e treinar os regimes de apartheid da África do Sul e da Rodésia. Em contraposição, construiu-se uma solidariedade entre os movimentos de resistência ao apartheid, na África do Sul, e na Palestina que dura até hoje. Da África do Sul, veio o exemplo para o movimento de boicote ao Estado racista, que golpeou fortemente os racistas afrikaners, e que, com o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), transforma-se num poderoso instrumento contra o racismo sionista.

Um enclave racista

Essa definição era muito combatida nos anos iniciais do Estado sionista. Ainda persistia a imagem do sionismo progressista, de seus fundadores e dos kibutzim como colônias socialistas. Esse suposto caráter progressista ou democrático era contraposto pela mídia e até pela esquerda reformista ao caráter supostamente atrasado dos palestinos e dos árabes. Também contribuía para isso o mito de que Israel teria empreendido uma luta de “Davi contra Golias”, baseado no tamanho da população e do território. No entanto, Israel não parou de se expandir e de estender sua natureza racista a novos territórios. De trazer colonos de fora do país ou de áreas internas e fazer com que eles ocupassem terras palestinas. De jamais aceitar a volta dos refugiados criados pela limpeza étnica em todos esses anos.

A Nakba de 70 anos atrás continua hoje. A natureza do Estado criado com base na concepção sionista impede qualquer via democrática, pois está baseada numa definição estatal racista e, assim, numa maioria demográfica judaica que é a única aceita como cidadã desse Estado. Não há a menor perspectiva de que as correntes que dirigem Israel aceitem qualquer solução intermediária, com concessões mútuas aos palestinos. A única solução possível aos olhos dos sionistas de todas as facções é que os palestinos aceitem sua expulsão, e que os poucos que ficarem sejam cidadãos de segunda classe.

Agora, a posse de Donald Trump nos EUA, que tem um acordo mais estreito com o governo de Netanyahu, permite que Israel deixe de lado o discurso demagógico e apresente claramente seu projeto e o transforme em instituições e leis. O caráter de Israel se desnuda, o projeto de Ben Gurion e dos fundadores torna-se explícito.

Como expressão dessa política para institucionalizar o projeto sionista até o fim, Netanyahu já havia posto em prática a definição de Jerusalém como capital exclusiva em novembro de 2017. Pela resolução da ONU na partilha de 1947, Jerusalém teria de ser internacionalizada para permitir o acesso das três religiões que a consideram sagrada – e ter a administração dividida entre os dois estados. Trump, então, decidiu anunciar a mudança de sua embaixada para Jerusalém.

A definição final de Israel como Estado baseado em apartheid foi votada no Knesset (parlamento israelense) no dia 19 de julho de 2018. Essa já era a realidade na prática, mas agora está no papel. A mudança legal define Israel como um Estado exclusivamente judeu. Segundo essa lei, os assentamentos judaicos em todo o território da Palestina são considerados parte do Estado de Israel e devem ser defendidos. A população árabe é relegada à condição de não-cidadã, e seu idioma não é reconhecido como uma das línguas. Essa lei gerou uma reação ampla dos árabes que vivem no território palestino de 1948 (que hoje se denomina Israel) e até dos drusos, pois oficializa o Estado racista de Israel.

Os drusos compõem um setor minoritário que os sionistas atraíram desde a Nakba, para separá-los dos demais palestinos, tanto que muitos deles são recrutados e servem ao exército israelense, ocupando, inclusive, altos cargos oficiais. Mesmo assim, ficaram também excluídos da cidadania. Daí seu protesto contra a lei. 

Nas palavras de uma diretora da organização de esquerda norte-americana Jewish Voice for Peace (Voz Judaica para a Paz), a rabina Alissa Wise:

Hoje, abandonamos de uma vez por todas a ilusão de que Israel é uma democracia. O projeto do Estado-nação que Israel aprovou hoje consolida Israel como um Estado de apartheid – da Cisjordânia a Gaza, a Jerusalém e a Haifa. Os palestinos, não importa onde morem, são controlados por um governo e por forças armadas israelenses que os privam dos direitos e de liberdades fundamentais.5

A perda de apoio entre os intelectuais

Em 1948, boa parte da intelectualidade de esquerda europeia da época apoiava o Estado de Israel. Nomes como o filósofo Jean-Paul Sartre, em 1949, comovidos pelo genocídio dos judeus europeus pelos nazistas, tornavam sua fundação um avanço da democracia e do progresso, dizendo que um Estado de Israel autônomo legitimava os combates do povo judeu e “era um dos mais importantes acontecimentos de nossa era […] para todos nós significa um progresso concreto em direção a uma humanidade onde os homens serão o futuro do homem”. 6 Saudavam a libertação dos sobreviventes de um povo chacinado sem se aterem ao que a fundação de Israel significava para os palestinos e para os próprios judeus que, atraídos pela ideia sionista, caíam assim numa armadilha.

O BDS

Hoje existe um desencanto crescente, pois a realidade golpeou os mitos divulgados pelo sionismo e pela mídia imperialista. Em vez da ideia de 1948-1949, do resgate de um povo perseguido, aparece a imagem real de um estado militarista com líderes racistas, praticando massacres, matando crianças etc. Existe uma campanha ampla e democrática de boicote a Israel que começou em 2005, a partir de uma frente de organizações sindicais e democráticas palestinas e inspirada no boicote contra o regime de apartheid da África do Sul.

A campanha tem como um dos centros o reconhecimento do direito de retorno aos palestinos expulsos de suas terras. Já atingiu alguns sucessos, como o grande físico Stephen Hawkings, que se recusou a comparecer a um evento em Israel depois dos massacres de Gaza. Teve a adesão de artistas como os atores Javier Barden, Danny Glover, Penelope Cruz, o diretor Pedro Almodóvar, os músicos Roger Waters, Santana e muitos outros. No futebol, a seleção argentina de 2018 acabou desistindo de jogar uma partida em Israel diante da pressão dos ativistas do BDS. O chamado ao boicote cumpre um papel muito importante, como o foi na África do Sul do apartheid, e começou a preocupar seriamente Israel e o stablishment sionista. Já existe um dispositivo de espionagem do governo sionista articulado com seus representantes nos países para tentar criminalizar as ações de boicote, acusando-as de antissemitas.

A perda de apoio de Israel na comunidade judaica em todo o mundo

Israel conseguiu, durante muitos anos, apoiar-se, por um lado, na principal potência imperialista, os Estados Unidos, e, por outro, na comunidade judaica, em especial na burguesia que sustenta o projeto sionista com o apoio financeiro e político-midiático. De todo o mundo, a principal fonte de sustento é a colônia judaica norte-americana, por sua força econômica e política. Calcula-se em três milhões o número de judeus nos EUA. Pesquisas recentes mostram um afastamento crescente dos jovens de origem judaica de Israel, em especial por conta das práticas racistas explícitas de massacres de civis desarmados em Gaza. Diante desses ataques, a atriz israelense Natalie Portman recusou-se a receber um prêmio israelense.

Nesse sentido, Israel vem perdendo terreno e sua imagem desgasta-se cada vez mais com a ruptura de judeus com o sionismo e o surgimento de grupos cuja ação dirige-se contra os abusos de Israel. Existe uma série deles, como a rede Ijan. O grupo Jewish Voices for Peace, que sempre denuncia os abusos e aderiu ao BDS, alega ter mais de 60 mil filiados e 250 mil seguidores. Ao se colocar a favor do direito de retorno dos palestinos, desafia diretamente um dos postulados do sionismo: não permitir a volta dos palestinos às suas terras, o que geraria uma maioria de árabes em relação aos judeus na Palestina.

Os dirigentes do establishment sionista estão alarmados. Ronald Lauder, presidente do Congresso Judaico Mundial, figura importante do lobby sionista, declarou-se preocupado com a perda de legitimidade de Israel e a dificuldade de seus apoiadores judeus tradicionais nos EUA e em outros locais do Ocidente em defenderem suas ações, o que poderia “levar a uma divisão entre o Estado judeu e seus apoiadores”. 7 Entre suas preocupações, a maior é com a juventude judaica que “não quer mais se associar a uma nação que discrimina judeus não ortodoxos, minorias não judaicas e a comunidade LGBT” e até mesmo quer “deixar de combater o BDS, deixar de sustentar Israel em Washington” e deixar de garantir a “retaguarda estratégica que Israel tanto necessita”. Isso não modifica a relação estreita entre as altas esferas do Estado norte-americano, seu Congresso e a força do lobby sionista, como o AIPAC, 8 mas mostra sua perda de legitimidade crescente.

Outra fonte de desprestígio é a ação cada vez mais repressiva do Estado de Israel contra os ativistas de direitos humanos e contra os dissidentes judeus de dentro e de fora. Nas últimas semanas, aumentaram as medidas contra advogados, como o diretor da Human Rights Watch para Israel e Palestina, Omar Shakir, um norte-americano de origem palestina que foi impedido de permanecer em seu escritório em Ramallah, na Cisjordânia, e teve de deixar o país. Assim como os abusos na entrada do aeroporto contra dissidentes e ativistas de direitos humanos e até jornalistas judeus liberais que se tornam suspeitos por fazerem críticas, como Peter Beinart, da rede de TV CNN. Cem advogados ligados aos direitos humanos fizeram uma carta protestando contra esses abusos.

Notas:

  1. Dados de J. Nitzan e S. Bichler, “The global political Economy of Israel”, cap. 5: The Weapondollar-Petrodollar Coalition. ↩︎
  2. Extraído do site da Ijan – Rede Internacional de Judeus Antissionistas, “El Rol de Israel en la Represión Mundial”, publicado em fevereiro de 2013. ↩︎
  3. Idem ↩︎
  4. Idem ↩︎
  5. Extraído do site da Jewish Voice for Peace. Declaração publicada em 19 de julho de 2018. ↩︎
  6. Extraído do texto “O nascimento de Israel”, de Jean-Paul Sartre, publicado em junho de 1949. ↩︎
  7. Haaretz, 8/8/2018. ↩︎
  8. Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel, fundado na década de 1950, com mais de cem mil membros ativos. ↩︎

Publicado em junho de 2018 na revista Marxismo Vivo N. 12.

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