As contribuições de Engels ao marxismo
Um amplo leque de correntes e intelectuais centra seus ataques no legado teórico de Friedrich Engels ao marxismo. Parte dessa campanha inclui muitos que se reivindicam marxistas. Diante do nocivo mecanicismo stalinista, propõem um “retorno” às origens do pensamento de Marx, como uma espécie de “vacina” contra tudo que possa parecer determinismo, econômico ou natural.

Um amplo leque de correntes e intelectuais centra seus ataques no legado teórico de Friedrich Engels ao marxismo. Parte dessa campanha inclui muitos que se reivindicam marxistas. Diante do nocivo mecanicismo stalinista, propõem um “retorno” às origens do pensamento de Marx, como uma espécie de “vacina” contra tudo que possa parecer determinismo, econômico ou natural. Como afirma Nahuel Moreno: “todas as correntes revisionistas modernas atacam a Engels em nome do marxismo”. 1 Devido ao imenso prestigio de Marx, o alvo escolhido foi Engels, que lhes pareceu um alvo menos difícil de atingir, apesar de ser um dos pais do próprio marxismo.
Por José Welmowicki
Em seus últimos anos, Engels foi um deformador da obra de Marx? Foi um determinista? Sua aplicação do materialismo dialético à natureza constitui uma extrapolação indevida de uma dialética que se aplica unicamente à sociedade? Sua visão sobre o tema preparou o terreno para a degeneração da II Internacional e para o stalinismo? Engels terminou caindo numa lógica positivista, isto é, numa visão de que o progresso da sociedade ocorre a partir de uma crescente incorporação da ciência em seu seio?
A polêmica ao redor desses assuntos tem mais de um século; são temas recorrentes sempre que se discute a figura de Engels. Por isso, vamos aqui sistematizar os principais questionamentos que foram surgindo, ainda que não seja possível incluir todos. Entre os críticos mais conhecidos estão Lukács e vários de seus seguidores, alguns dos principais filósofos da Escola de Frankfurt (como Herbert Marcuse), Jean Paul Sartre, e correntes como os chamados “marxistas humanistas”, oriunda da Tendência Johnson-Forrest (pseudônimos de C.R.L. James e Raya Dunayevskaia, respectivamente), uma cisão do antigo SWP norte-americano na década de 1950, assim como boa parte dos intelectuais que, embora se reivindiquem marxistas, não defendem a revolução socialista, mas apenas a radicalização da democracia.
Por outro lado, não partiremos do zero, porque já existe uma polêmica desenvolvida contra intelectuais anti-engelsistas. Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky, durante toda sua vida apoiaram-se explicitamente nas elaborações de Marx e Engels, e defenderam-nas contra os revisionistas da II Internacional e contra o stalinismo no caso de Trotsky.
Como essa polêmica não é nova, muitos autores estudaram a obra de Engels e demonstraram sua identidade com o pensamento de Marx, começando por David Riazanov. Mais recentemente, autores como Nahuel Moreno 2, John Rees 3 e o economista marxista Michael Roberts também se posicionaram nesse sentido.
Entre estas contribuições, uma muito importante foi a do físico-químico Robert Havemann, que viveu na Alemanha Oriental, sobre a relação entre o materialismo dialético e as ciências.
Havemann foi um cientista defensor do marxismo e também um ativista político contra o regime vigente. Ele se enfrentava no campo teórico com a concepção stalinista da burocracia da RDA e do Kremlin nas décadas de 1960 e 1970.
O primeiro ataque: Lukács
Uma das primeiras vozes nas fileiras marxistas a questionar Engels, argumentando contra a utilização do método dialético para analisar a natureza, foi o filósofo húngaro Georg Lukács. Seus primeiros comentários críticos aos conceitos de Engels sobre a relação entre homem e natureza aparecem no livro História e consciência de classe, publicado em 1923. No artigo “O que é o marxismo ortodoxo?”, incluído no livro, ele afirma numa nota de rodapé, em que fica mais claro o questionamento a Engels.
“Esta limitação do método à realidade histórico-social é muito importante. Os mal-entendidos que o modo engelsiano de expor a dialética tem causado derivam essencialmente do fato de Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – ter estendido o método dialético ao conhecimento dos natureza; sendo assim as determinações decisivas da dialética; ação recíproca entre sujeito e objeto, unidade de teoria e prática, modificação histórica do substrato das categorias como base de sua modificação no pensamento, etc., não são encontrados no conhecimento da natureza. Infelizmente, não tenho espaço para discutir essas questões em detalhes.” 4
Para Lukács, Engels ignora a questão da dialética sujeito-objeto no processo histórico, segundo ele essencial ao marxismo. Essa determinação, de acordo com essa leitura, levaria a retirar do método dialético a questão da transformação prática, sua dimensão prática-revolucionária, e isso acarretaria uma volta ao materialismo contemplativo, ao estilo de Feuerbach. Ou seja, a busca de uma dialética que ligasse a história humana à história natural seria incorreta. Por isso, Lukács acusava Engels de obscurecer a dialética autenticamente revolucionária de Marx. 5
O problema é que a realidade não pode ser separada em planos ou compartimentos intransponíveis, sujeitos a leis completamente diferentes, pois se um desses planos é considerado “real”, que nome poderia ser dado aos demais? Se existe um plano que não pertence àquilo que é real, só pode ser algo irreal, algo que não está no mundo objetivo e só tem significado enquanto obra da imaginação; portanto, a ideia criaria um outro mundo, e recaímos no idealismo. Ou seja, se a natureza forma uma totalidade, na qual está contemplada o mundo objetivo – e a humanidade faz parte dele –, não há sentido em isolar a humanidade ou isolar a natureza, vendo seu desenvolvimento em oposição ao homem e à sociedade. Por isso, é um erro ver a dialética “somente” na sociedade, não na natureza.
Uma parte do chamado “marxismo ocidental” 6 posteriormente iria além e negaria completamente a existência de uma dialética na natureza. Isto leva diretamente ao idealismo filosófico.
Afinal, se a natureza é alheia à dialética, se ela não tem um desenvolvimento através da história, e só quem tem uma história é a humanidade, isso significa que existem duas esferas paralelas e isoladas: a sociedade humana, que tem história, e a natureza 7. Assim, a humanidade estaria se movendo em base a leis próprias de sua esfera. E a natureza, por não possuir tais leis, seria estática e teria surgido de alguma origem/causa externa – o que era a convicção de Hegel. Lembremos que Hegel defendia que a ideia era a geradora da realidade objetiva (por isso, Lenin chama sua concepção de “idealismo objetivo”).
As teorias científicas sobre a evolução do sistema solar e dos planetas, assim como a teoria da evolução das espécies de Darwin, dão base uma visão dialética da natureza, independente da ação humana até seu surgimento. A partir do surgimento da humanidade passa a haver uma interação em que o ser humano, diferentemente dos demais animais, atua sobre o mundo real, tal como ele é.
A crítica de Lukács não teve grande repercussão imediata e ele se retratou depois, quando aderiu ao stalinismo. Mais tarde, em textos como Prolegômenos para uma Ontologia do ser social, publicado postumamente, voltou a fazer críticas às formulações filosóficas de Engels, embora reivindicando seu papel na elaboração e divulgação do marxismo.
Mas o importante aqui não é seguir todo o percurso teórico de Lukács, com suas idas e vindas. O central é entender que essa crítica do jovem Lukács inaugurou uma linha de contestação às posições de Engels, assumida depois por vários intelectuais, lukacsianos ou não.
Outros críticos
A maioria dos “marxistas ocidentais” inspira-se nessa crítica para considerar o materialismo dialético e o materialismo histórico, além do conceito de socialismo científico, como parte de uma visão determinista, atribuída a Engels, e não a Marx (ou pelo menos não ao jovem Marx). 8
A Escola de Frankfurt ficou conhecida no período pós-guerra, quando defendeu que houve um desvio do marxismo após os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde está o texto “O Trabalho Alienado”, considerado por Erich Fromm como o texto central da “concepção marxista do homem”.
Para alguns deles, após este texto, Marx e em particular Engels teriam supostamente abandonado o “humanismo” e caído numa visão cientificista. Coerente com essa revisão, alguns dos críticos da Escola de Frankfurt afirmavam que não é possível associar a luta pela liberdade humana e pela desalienação da humanidade a uma determinada classe, no caso o proletariado. Herbert Marcuse, um dos principais filósofos dessa escola, elaborou uma análise sobre o proletariado dos países avançados considerando que haveriam perdido seu caráter revolucionário pela transformação do capitalismo em ‘capitalismo dirigido’, com sua organização que incorporava a maior parte dos trabalhadores na sociedade estabelecida. 9 Eles rejeitavam o papel do proletariado como sujeito social e, nessa linha, deveria retomar-se conceitos como “essência humana” que estaria submetida a uma alienação na sociedade atual e passaram a deender como estratégia uma luta pela desalienação do ser humano em geral e centrada na libertação do indivíduo. 10
O mesmo acabou acontecendo com o “marxismo humanista” de Raya Dunayevskaia 11, dos anos 1950-60. Após sair do SWP, focou sua estratégia nos conselhos operários, sem necessidade de um partido revolucionário, para logo depois deixar de ver a classe operária como sujeito social da revolução. O grupo foi pioneiro na procura de outros sujeitos sociais que substituíssem a classe operária, a partir dos setores oprimidos como os negros, as mulheres e outros. Esta tendência acabou deixando de se considerar um partido e permaneceu como um grupo intelectual de propaganda 12.
Jean Paul Sartre, filósofo de grande influência no pós-guerra, atacava Engels por repetir a mesma concepção que havia criticado em Hegel: impor as leis do pensamento à matéria. Segundo Sartre, Engels estenderia arbitrariamente a razão dialética, as leis que descobriu no mundo social, à natureza e às ciências. 13 Como observa Nahuel Moreno, por meio dessa crítica Sartre pensava valorizar a escolha individual, com sua filosofia existencialista – opondo-a ao determinismo stalinista, contra quem lutava nas décadas de 1950 e 60. Tal concepção levou-o a “levantar uma muralha chinesa entre o humano e a natureza orgânica e inorgânica”. 14 Assim, Sartre também caiu numa separação completa entre homem e natureza, ignorando a elaboração marxista sobre essa relação e absolutizando a opção política individual, independente da realidade, das condições objetivas.
O materialismo mecanicista em sua versão stalinista é uma decorrência da dialética da natureza de Engels?
Estas críticas levantam uma questão: a afirmação de uma lógica dialética aplicada à natureza seria uma base para o materialismo vulgar e mecanicista dos stalinistas? Muitos críticos de Engels opinam que o conceito de uma dialética da natureza presta-se inevitavelmente ao materialismo vulgar e ao positivismo.
A maioria dos antiengelsistas toma os textos filosóficos de Engels – Anti-Dhuring, Dialética da natureza e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – como demonstração de um suposto enrijecimento mecanicista, comparando-o negativamente com Marx, que escaparia a esse processo de vulgarização. Marx não teria conseguido impedir o companheiro de luta e de elaboração teórica de toda a vida de cair em semelhante deriva e, ao morrer em 1883, teria deixado Engels ainda mais livre para dar asas a seus supostos desvios cientificistas e mecanicistas. Em particular, a Dialética da Natureza é permanentemente denunciada como uma aplicação que se afasta completamente da concepção materialista dialética de Marx.
No entanto, neste texto, Engels foi explícito sobre a relação dialética entre o homem e a natureza. Como fundamento dessa visão está sua recusa à tese de Hegel de que a natureza – no sistema idealista hegeliano é um atributo da Ideia que viveria uma eterna repetição – não seria suscetível a um desdobramento histórico. Engels ressalta a posição ativa do homem em relação à natureza. E antecipa como essa relação pode levá-lo a modificar e até mesmo destruir a natureza, antecipando a preocupação atual com a crise climática.
Em um capítulo dessa obra, O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, ele escreve:
“Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza […] A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma delas produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar, mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e em outras partes destruíram os bosques para obter terras cultiváveis, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. […] Somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder conhecer suas leis e aplicá-las corretamente […] Na realidade, a cada dia que passa, aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossa intervenção no processo que a mesma leva a cabo.” 15
É interessante notar como, já nesse texto, Engels problematiza a relação homem-natureza, a relação dialética entre o progresso econômico e científico de determinada sociedade e as possíveis consequências sociais contraditórias:
“Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, den-tro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sen-tido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos desses atos. (…) E, quando Colombo descobriu a mesma América, não podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde muito, em toda a Europa, estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro.” 16
Robert Havemann: o combate ao stalinismo na ex-Alemanha Oriental, apoiado em Engels
Durante o domínio stalinista na antiga Alemanha Oriental, o cientista Robert Havemann escreveu o livro Dialética sem dogma. Havemann intervinha nos debates científicos quando as academias oficiais da ex-URSS e da ex-Alemanha Oriental se recusavam a aceitar as descobertas de cientistas como Linus Pauling 17, porque seriam uma “negação do materialismo dialético”. 18
Robert Havemann viu-se obrigado a defender as descobertas científicas de Pauling e mostrar como a tentativa de vetar determinadas evidências, supostamente passíveis de um “idealismo burguês”, conduzia à negação do marxismo. Nesta defesa, Havemann colocava-se em defesa do marxismo contra o stalinismo, do materialismo dialético contra a deformação mecanicista da burocracia e, para contestar a burocracia soviética, apoiava-se em Marx e, particularmente, nos trabalhos filosóficos sobre a relação entre natureza e sociedade feitos por Engels.
Sobre a relação entre ciência e método dialético, o cientista alemão escreve:
“Vamos lembrar mais uma vez o que os clássicos falam sobre isso. Eles sempre enfatizaram que o problema capital das ciências naturais, como de todas as ciências para o resto, consiste em passar do pensamento mecanicista, metafísico, a um pensamento dialético cada vez mais consciente… Nenhum filósofo em todo o mundo pode dizer como a teoria das partículas elementares deve ser posta dialeticamente. Mas essa teoria não pode ser desenvolvida sem o pensamento dialético, nem o conhecimento já adquirido nelas será compreendido em toda a sua profundidade sem assimilar o pensamento dialético.” 19
“Essas ideias 20, não apenas admiravelmente confirmadas pela teoria científico-natural mas, além disso, aprofundados por ela, têm grande importância para toda a nossa relação com o mundo. A imagem do mundo traçada pelo materialismo mecanicista não nos deixou liberdade para uma ação real. Todo o futuro, incluindo todas as nossas ações, já estava totalmente determinado pelo passado.
“A primeira ruptura com esse determinismo rígido e, além disso, com a reinterpretação dos conceitos de passado, presente e futuro, ocorreu motivado pelos resultados da teoria da relatividade […] o passado é tudo aquilo de que podemos ter conhecimento; futuro é tudo em que ainda podemos intervir. Nem uma coisa nem outra existem no mundo do determinismo metafísico clássico.
“… O fato de que desafiamos a ideia mecanicista clássica de que o futuro é totalmente determinado não significa, é claro, que vamos declarar que o futuro é totalmente indeterminado. O futuro é codeterminado pelo passado, mas não é determinado de forma definitiva e absoluta. […]. O homem, com a sua atividade, não é uma mera bola com a qual jogam as casualidades fantásticas, mas justamente o inverso: o homem utiliza praticamente a casualidade dos acontecimentos para conseguir o que deseja. Se esse acaso cego não existisse, não poderíamos transformar o mundo com nossos olhos videntes. A liberdade do homem baseia-se precisamente no fato de que o futuro do mundo pode ser determinado porque ainda não está determinado.” 21
Como explicaremos mais adiante, o raciocínio de Havemann é bem semelhante ao de Lenin e Trotsky sobre como o materialismo dialético pode e deve ser aplicado à ciência e ao estudo da natureza: não como uma filosofia externa que se impõe à realidade, mas um auxílio para os cientistas melhor entenderem os processos complexos das ciências naturais.
Evidentemente, há diferenças na aplicação das leis da dialética na natureza e na história, mas ambas são parte do real, do mundo objetivo.
Engels tinha uma concepção oposta à de Marx na aplicação da dialética à natureza?
De modo algum. Não só porque Engels trabalhou em equipe com Marx, havendo uma divisão de tarefas entre ambos em relação às suas áreas de estudo, mas porque a visão de Marx, elaborada em conjunto com Engels, permaneceu fundamentalmente a mesma quanto à interação entre homem, natureza e sociedade.
No texto A Ideologia alemã – que, segundo Marx 22, serviu para colocar no papel a concepção materialista da história desenvolvida por ele e por Engels –, há uma série de referências a essa questão:
“Por exemplo, a importante questão sobre a relação do homem com a natureza (ou então, como afirma Bruno na p. 110, as ‘oposições em natureza e história’, como se as duas ‘coisas’ fossem coisas separadas uma da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da qual surgiram todas as ‘obras de insondável grandeza’ sobre a ‘substância’ e a ‘autoconsciência’, desfaz-se em si mesma na concepção de que a célebre ‘unidade do homem com a natureza’ sempre se deu na indústria e se apresenta de modo diferente em cada época de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indústria; o mesmo vale no que diz respeito à ‘luta’ do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento – e é por isso que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde cem anos atrás se viam apenas rodas de fiar e teares manuais, ou que ele descobre apenas pastagens e pântanos na Campagna di Roma, onde na época de Augusto não teria encontrado nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos.” 23
Marx teria modificado essa posição em uma fase posterior? Vejamos o trecho de O Capital em que Marx defende uma concepção idêntica:
“Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas. E, em uma nota de rodapé, Marx desenvolve essa ideia: a teoria molecular da química moderna… baseia-se em nenhuma outra lei além dessa.” 24
Riazanov, o maior estudioso sobre a obra de Marx e Engels e responsável pela formação do Instituto Marx-Engels na antiga URSS, resgatou várias obras inéditas ou publicadas de forma fragmentada pelos seus executores testamentários alemães (entre eles, Bernstein). Segundo ele,
“Entre o ponto de vista da Ideologia Alemã e o que se desenvolveu no primeiro volume de O Capital não há qualquer tipo de ‘salto’. As concepções básicas que Engels desenvolveu no Anti-Dühring na seção de Filosofia, mesmo nas partes relacionadas às ciências naturais, já tinham sido completamente formuladas em O Capital em uma série de observações, que foram tão distorcidas por Dühring. No Anti-Dühring, Engels desenvolve o método dialético que Marx e ele tinham criado e que tinham empregado desde 1846, desde o tempo da Ideologia alemã. Quando publiquei Dialética da Natureza de Engels, que eu tinha descoberto, meu prefácio enfatizou que, em comparação com o que Engels havia dito no Anti-Dühring, este não continha nenhuma ideia nova. Eu escrevi ‘nenhuma ideia nova’ intencionalmente. A tentativa insustentável de alguns companheiros de encontrar algumas diferenças entre o Anti-Dühring e Engels da década de oitenta, que tinha ‘concepções completamente opostas’, surge do entendimento pouco claro de algumas observações no Anti-Dühring e de uma leitura desatenta do prefácio de Engels para a segunda edição do Anti-Dühring.” 25
Colocadas as premissas do problema e da discussão, no próximo texto veremos as consequências das críticas às elaborações de Engels na elaboração teórico-programática.
Notas
- MORENO, Nahuel. Lógica marxista y ciencias modernas, México: Xolotl, 1973, p. 33. ↩︎
- Moreno em seu texto aborda também esse tema em relação aos críticos de Engels da época, Sartre e Della Volpe. ↩︎
- Foi membro da direção do SWP inglês. Rompeu com outros dirigentes em 2009 e fundou o grupo Counterfire. ↩︎
- LUKÁCS, Georg. Historia y conciencia de clase. Buenos Aires: Ediciones R. y R., 2013, p. 91. ↩︎
- [5] Por outro lado, é verdade que Lukács, nesse mesmo livro História e consciência de classe, tem uma variação sobre esse tema: primeiro nega que o método dialético seja aplicável à natureza, por falta de dimensão subjetiva; e em outro trecho do mesmo livro reconhece a existência de uma dialética distinta e objetiva na natureza. ↩︎
- Apesar de ser um termo muito genérico, optei por utilizar o conceito de Perry Anderson, que serve para abarcar uma série de correntes que tiveram em comum essa localização teórica, apesar das diferenças entre elas. ↩︎
- Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, escreve: “o pensamento que é alienado e abstrato e ignora o homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato… a natureza como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele, uma privação dele mesmo, e só concebida como algo externo, como pensamento abstrato, mas pensamento abstrato alienado”. ↩︎
- Apoiam-se em particular nos Manuscritos econômico-filosóficos. ↩︎
- “Mas precisamente nos países industriais avançados, já por volta da passagem do século, as contradições internas foram sendo dominadas por uma organização progressivamente eficiente, e a força negativa do proletariado foi sendo progressivamente reduzida”, Razão e revolução, Rio, Paz e Terra, 1978, p. 404. ↩︎
- Idem, pag. 407 ↩︎
- Raya Dunayevskaia foi uma militante russo-americana que trabalhou por um curto período como tradutora e secretária de Trotsky em seu exílio no México. Rompeu com o SWP junto com Schatchman e Burnham em 1940, voltou a este partido em 1947 para afinal romper definitivamente no início dos anos 1950. Considerava a ex-URSS como “capitalismo de estado”. ↩︎
- Alguns de seus integrantes, como o professor universitário Kevin Anderson, autor de Marx nas margens defendem essas posições nos debates sobre o marxismo na academia. ↩︎
- Sartre escreve: “O resultado desse belo esforço [de Engels] é paradoxal: Engels censura Hegel por impor as leis do pensamento à matéria. Mas é precisamente o que ele mesmo faz, pois obriga as ciências a verificar uma razão dialética que ele descobriu no mundo social. Somente no mundo histórico e social, como veremos, existe verdadeiramente uma razão dialética; ao transportá-lo para o mundo “natural”, dando-lhe força, Engels tira sua racionalidade. Não se trata mais de uma dialética que o homem faz , fazendo-se a si mesmo, mas de uma lei contingente da qual só se pode dizer: é assim e não de outra forma”. in Marxismo y Existencialismo. Buenos Aires: Sur, p. 128, apud Moreno, Lógica marxista y ciencias modernas, p. 38. ↩︎
- MORENO, Nahuel. Lógica Marxista y ciencias modernas. México: Ed. Xolotl, 1981, p. 39. ↩︎
- Citados por Michael Roberts, Engels sobre a natureza e a humanidade, em: <litci.org/pt/michel-roberts-engels-sobre-natureza-e-humanidade/>. ↩︎
- Idem ↩︎
- Pauling foi pioneiro na aplicação da Mecânica Quântica em química e recebeu o prêmio Nobel de Química em 1954. ↩︎
- Houve também o famoso caso Lyssenko, cientista russo que defendeu que a genética era estranha ao materialismo dialético e conseguiu impor esse ponto de vista e banir a genética da URSS por anos. Lyssenko não se cansou de atribuir suas teses diretamente a Stalin e ao suposto mérito deste último como o “maior cientista” dos tempos atuais. ↩︎
- ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Berlim 1952, p. 223. ↩︎
- Havemann refere-se à seguinte citação da Dialética da Natureza: “Os pesquisadores da natureza, ainda que se revolvam são dominados pela filosofia. A questão é se eles querem sê-lo por uma má filosofia que esteja na moda ou por uma forma de pensamento teórico que se baseia no conhecimento da história do pensamento e de suas conquistas. Os pesquisadores da natureza ainda estão permitindo uma vida vegetativa para a filosofia, ao utilizar os restos da antiga metafísica. Somente quando a dialética haja sido assimilada pelas ciências da natureza e da história e tornar supérflua a velha bugiganga filosófica – exceto para a pura teoria do pensamento – então desaparecerá absorvida pela ciência positiva”. ↩︎
- HAVEMANN, Robert. Dialéctica sin dogma, 10ª lección, p. 87. ↩︎
- No Prefácio à Contribuição à crítica da economia política: “Friedrich Engels, com quem mantive uma troca constante de ideias por correspondência desde que a publicação de seu brilhante ensaio sobre a crítica das categorias econômicas … chegou por outro caminho (compare sua A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu, e quando, na primavera de 1845, ele também veio morar em Bruxelas, decidimos apresentar em conjunto nossa concepção, em oposição à concepção ideológica da filosofia alemã, de fato, para prestar contas com nossa antiga consciência filosófica”. ↩︎
- In A Ideologia alemã, Feuerbach, História, S. Paulo, Boitempo p. 31. ↩︎
- Citado em: Anti-Dühring, Parte I, Dialética, Capítulo XII: “Quantidade e qualidade”. ↩︎
- RIAZANOV, David. 50 anos do Anti-Dühring, 1928. ↩︎
Publicado em novembro de 2020 na revista Marxismo Vivo N. 16