Cidadania, democracia e sociedade civil, o retorno de Eduard Bernstein

A falência do modelo neoliberal, a crise do capitalismo global e o colapso do stalinismo nos últimos anos do século XX – e ainda mais neste início do século XXI – combinaram-se com o ascenso de poderosos movimentos de contestação antiglobalização e de trabalhadores, camponeses e indígenas contra as condições de vida impostas pelo neoliberalismo.

A falência do modelo neoliberal, a crise do capitalismo global e o colapso do stalinismo nos últimos anos do século XX – e ainda mais neste início do século XXI – combinaram-se com o ascenso de poderosos movimentos de contestação antiglobalização e de trabalhadores, camponeses e indígenas contra as condições de vida impostas pelo neoliberalismo. Assim, gera-se uma efervescência política em relação a um programa alternativo ao capitalismo imperialista.

Por José Welmowicki

O Fórum Social Mundial é uma expressão dessa intensa busca por um projeto alternativo. No entanto, as propostas apresentadas por suas principais referências até agora se baseavam em teorias que buscavam reformar ou humanizar o capitalismo. Conceitos como “sociedade civil”, a conquista da “cidadania, democracia radical” passaram a substituir – dentro da elaboração de diversas correntes de esquerda – o conceito de luta de classes. A própria ideia de revolução socialista é rejeitada. Seu lema é “Outro mundo é possível”, sem definir qual é o caráter desse outro mundo nem como alcançá-lo. Algumas dessas correntes, que anteriormente se posicionavam como marxistas, propõem “atualizar o marximo” sob essas bandeiras. A característica mais geral é que rejeitam a revolução socialista e propõem-se a mudar o mundo por uma via reformista em nome da “justiça, do direito universal” e da transformação democrática do Estado. Propõem, como linha de orientação política, a “democracia participativa” ou “radical”, ou seja, a ampliação dos direitos e dos espaços democráticos do Estado burguês por meio de uma maior participação popular.

Porém, seus autores sempre omitem a origem dessas ideias. Em geral, apresentam-nas como elaborações originais, como fruto das modificações da realidade, como a globalização, ou como fruto de uma reflexão, de um repensar da teoria socialista frente aos impasses pós-queda do muro de Berlim. Tentam se apresentar como uma saída renovadora, após o colapso do stalinismo. Correntes social-democratas, stalinistas, ex-stalinistas e até algumas que ainda se reivindicam do marxismo revolucionário atribuem a Lenin – ou a outros – os desastres dos chamados países socialistas e do stalinismo em geral e, assim, justificam suas posições cada vez mais defensoras da “sociedade democrática”.

Ao apresentarem-se como formulados a partir de uma “nova estratégia socialista”, tentam ocultar sua dívida com pensadores e correntes de esquerda bastante anteriores, que em sua imensa maioria já haviam escrito posições semelhantes.

A origem histórica do primeiro revisionismo

Bernstein foi o primeiro teórico oriundo do movimento operário a elaborar uma revisão completa do marxismo, adaptada às perspectivas da burocracia sindical e política e da intelectualidade reformista, que já tinham grande influência no seio do Partido Social-Democrata alemão. Essa posição era minoritária entre os dirigentes do partido social-democrata no final do século XIX. Somente após a Primeira Guerra Mundial passou a dominar, teorica e politicamente, o partido. Por isso, Bernstein tentou, a princípio, apresentar suas ideias como uma atualização e correção parcial das posições de Marx e Engels, para aparecer como um seguidor crítico do marxismo – e não como alguém frontalmente contrário às suas posições. 1

Essa primeira reação no seio do movimento operário e do marxismo – contrária às posições marxistas revolucionárias – incorporava a visão liberal-burguesa (sob outro nome) para justificar seu reformismo. Era, como não se cansava de afirmar em sua defesa, a expressão programática de uma prática, cada vez mais presente na intervenção política diária dos organismos do partido alemão, em uma época de luta por reformas que durou desde o último quarto do século XIX até o início do século XX e que acostumou o partido social-democrata à vida legal e às conquistas graduais. Seu encanto pela democracia burguesa provinha dessa expressão material, pela via reformista: sua renúncia a levantar antagonismos de classe, sua crença na moral e no possível idealismo desinteressado de todos os setores da sociedade. Em suma, sua aceitação da realidade da ordem burguesa vigente – do parlamento, do direito e da justiça burguesa – como horizonte e limite da prática e da luta social-democrata. Suas posições teóricas e programáticas assentavam-se numa inquestionável coerência com essa visão política de transformação gradual rumo a uma sociedade mais justa dentro da ordem vigente. Por isso, com razão, seus críticos no partido – em particular Rosa Luxemburgo – qualificavam-no de “revisionista” do marxismo.

As principais posições de Bernstein: cidadania e emancipação de classe

No principal texto de Bernstein, As premissas para o socialismo e as tarefas da social-democracia, 2 é sintomático como já aparece a luta “pela cidadania” como substituta da luta “pela emancipação do proletariado”. Uma característica de sua posição é negar a ideia de uma classe em nome de uma cidadania a ser alcançada: “A social-democracia não deseja aniquilar essa sociedade e fazer de todos os seus membros novos proletários; trabalha quase incessantemente para elevar o trabalhador, de uma posição social de proletário, à posição geral de cidadão e, assim, fazer da cidadania um direito universal”. Isso, segundo Bernstein, seria alcançado pela ampliação dos direitos dos setores desfavorecidos.

A consequência política dessa posição era aceitar a ordem burguesa, pois, ao considerar a “cidadania” como o estado superior para todas as classes, significava aceitar a sociedade burguesa como a sociedade humana, como bem replicava Rosa Luxemburgo: “quando (Bernstein) usa a palavra cidadão, sem distinções, para se referir tanto ao burguês quanto ao proletário, querendo com isso referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa”. 3

Comparando com os atuais defensores da cidadania como estratégia, fica claro que a lógica é a mesma: nega-se o antagonismo de classe, nega-se a contradição estrutural entre burguesia e proletariado, para justificar a possibilidade de avançar em direção a uma sociedade justa sem romper com o capitalismo, sem expropriar os meios de produção, com a ampliação contínua dos direitos individuais e sociais. Assim como os atuais estrategistas da cidadania, em vez de derrotar a burguesia, Bernstein pensava em alcançar uma civilização superior sem destruir o capitalismo, que deveria ter uma construção independente e por cima das classes.

Colocar a cidadania como horizonte superior exigia a aceitação de leis e procedimentos no interesse de todos, o que acabava conduzindo apenas à defesa da reforma da ordem vigente. Já discutimos em um artigo anterior 4 que também aqueles que defendem a cidadania planetária – como a ATTAC, um dos principais motores do Fórum Social Mundial – aplicam, em escala internacional, essa mesma lógica que identifica a cidadania em um país com a aceitação da ordem capitalista. Por isso, dirigem seus esforços para fazer da ONU um governo democrático mundial, assim como propõem que os estados mudem seu papel e adquiram mais força frente àqueles que manejam os mercados internacionais. 5

A sociedade civil para Bernstein

A visão de Bernstein sobre a sociedade civil tinha a mesma base teórica: a redução da sociedade a uma soma de indivíduos que podem se desenvolver de forma harmônica. Ele sustentava que todas as classes possuem um interesse comum na manutenção e no aperfeiçoamento dos valores civilizados, e que esse interesse comum seria o objetivo da atividade política.

Para Bernstein, os valores da “sociedade civil desenvolvida” continham e transcendiam todos os interesses e pontos de vista setoriais, de classe. “A moralidade da ‘sociedade civil desenvolvida’ de forma alguma é idêntica à moralidade da burguesia”.

Em Socialismo evolucionário, Bernstein chamava a atenção para o fato de que a palavra alemã “bürgerlich” significava tanto “civil” quanto “burguesa”, e que essa ambivalência linguística teria criado a falsa impressão de que, ao clamar pela abolição da sociedade burguesa, os socialistas também estariam exigindo o fim da sociedade “civil”.

Os social-democratas de hoje costumam usar essa mesma referência:

A sociedade civil que queremos criar é uma sociedade de liberdade e autodeterminação, de solidariedade e de justiça. Uma sociedade que não seja dominada por uma classe, mas que confere aos cidadãos soberanos sua independência e responsabilidade próprias”. Assim proclamava, em seu discurso, o presidente do Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha, o chanceler Gerhard Schröder, em comemoração ao 125º aniversário do “Congresso de Unificação” (Congresso de Ghota) dos Eisenachianos com os Lassalleanos, origem do moderno SPD. 6

Bernstein e a democratização do Estado

Para Bernstein, o Estado burguês moderno, democrático, era a concretização da civilização, dos interesses de todos os homens, desvinculado das lutas de classes. A democracia burguesa era associada à “ausência de governo de classe” – ou seja, um governo que podia e devia ser aperfeiçoado, mas sem romper suas regras básicas. O texto a seguir ilustra o pensamento bernsteiniano:

Esta pergunta envolve outra. O que é o princípio da democracia? A resposta parece muito simples. Para começar, pensar-se-ia ficar tudo acertado com a definição: ‘”‘governo pelo povo’. Mas mesmo uma pequena meditação logo nos diz que, por essa definição, apenas nos é dado um conceito muito superficial e puramente formal, enquanto a maioria das pessoas que hoje usam a palavra democracia a entendem por algo mais do que uma simples forma de governo. Estaremos muito mais próximos da definição se nos exprimirmos negativamente e considerarmos a democracia como uma ausência de governo de classes, como indicação de uma condição social onde um privilégio político não pertence a qualquer classe, em oposição à comunidade inteira.

A idéia de democracia inclui, no conceito contemporâneo, uma noção de justiça – uma igualdade de direitos para todos os membros da comunidade e, nesse princípio, o governo da maioria, para o qual, em todos os casos concretos, a vontade da maioria se estende e encontra seus limites.

É claro que democracia e ausência de leis não são a mesma coisa. A democracia distingue-se de outros sistemas políticos não pela ausência de leis em si, mas pela ausência de leis que criem sanções ou limitem direitos individuais com base na propriedade, nascimento ou confissão religiosa. A democracia é tanto o meio quanto o fim. É uma arma de luta pelo socialismo e a forma pela qual o socialismo se realizará. É claro que ela não pode realizar milagres.7

Para Bernstein, o socialismo era “o legítimo herdeiro do liberalismo”. Para ele, “Não existe hoje um pensamento realmente liberal que não pertença também aos elementos do ideário socialista”. Por isso, quando várias personalidades da esquerda de hoje defendem “a democracia como valor universal”, sem qualquer definição de classe, convém lembrar que Bernstein já tinha essa concepção muito clara em seu pensamento no final do século XIX.

Rosa Luxemburgo contestou frontalmentre essa visão: “Quando (Bernstein) fala do caráter humano geral do liberalismo e transforma o socialismo em uma variante do liberalismo, priva o movimento socialista (em geral) de seu caráter de classe e, portanto, de seu conteúdo histórico; o corolário disso é que se reconhece na classe que representa historicamente o liberalismo – a burguesia -, a campeã dos interesses gerais da humanidade.8

Para Bernstein, o Estado não era necessariamente – nem, em geral, deveria ser – o instrumento de dominação de classe. Era o meio pelo qual a barbárie e a desumanidade poderiam ser eliminadas, onde os princípios da civilização avançada poderiam ser impostos a todos os aspectos da vida pública. Essa expansão da civilização, para ele, deveria ser o objetivo último da social-democracia, embora admitisse, em última instância, que quando a classe operária era sistematicamente excluída da arena política, não teria outra opção senão a luta revolucionária. Mas, se e quando a democracia fosse alcançada e todas as classes pudessem participar dos direitos civis e políticos, então seria possível atender às reivindicações dos trabalhadores por meios políticos normais e estabelecer compromissos políticos com base no “interesse comum”. O primeiro objetivo do movimento socialista deveria, por isso, ser a democracia plena, e é significativo que Bernstein definisse a democracia como “a ausência de um governo de classe”. 9

Essa concepção era contrária à essência da teoria marxista, que analisava tudo tendo como referência a dominação de classe e, no caso da sociedade capitalista, da dominação burguesa. Para Marx e Engels, todo Estado burguês – por mais democrático que fosse – correspondia a uma ditadura da burguesia. Lenin, em O Estado e a Revolução, deixava claro a necessidade de destruir a máquina estatal burguesa e revolucionar toda a superestrutura, construindo um Estado proletário, pela destituição e expropriação da burguesia, como demonstrado pela experiência da Comuna de Paris.

A atualidade do revisionismo de Eduard Bernstein: a esquerda e a democratização do Estado

A proposta de democratização do Estado é uma matriz de pensamento comum, atualmente, a uma gama de posições de esquerda que vão desde a social-democracia em todas as suas variantes (Terceira Via e outras) até o PC francês e o PT brasileiro, incluindo diversos ex-comunistas e setores que participam do FSM.

Para sustentar essa posição, alguns teóricos trabalharam o tema da defesa de uma sociedade democrática em contraposição a todas as sociedades “totalitárias”. Ou seja, a diferença seria dada pelo regime político e não pela natureza de classe. Outros defendem o que chamam de revolução democrática, tentando reformular teoricamente a problemática da revolução socialista. Ambas as correntes incorporam formulações de Bernstein e suas consequências, influenciando, na mesma direção reformista, várias correntes da esquerda atual.

Claude Lefort, ex-membro do antigo grupo Socialismo ou Barbarie, fundado por Castoriadis e outros ex-trotskistas dos anos 50, destacou-se por tentar fazer da crítica ao stalinismo um ponto de partida para negar o marxismo, buscando nele uma suposta raiz para o “totalitarismo”. Para isso, Lefort realiza uma leitura peculiar dos textos de Marx, nos quais define o Estado e os direitos burgueses, como na Questão Judaica, na Ideologia Alemã e outras obras.

Depois de recriminar Marx por sua “desprezo aos direitos humanos”, Lefort defende a superioridade da “sociedade democrática”, onde, segundo ele, “haveria um espaço vazio no poder, sem ser ocupado por ninguém – nem classes nem partidos”.

Ora minha convicção continua sendo a de que só teremos alguma oportunidade de apreciar o desenvolvimento da democracia e as oportunidades para a liberdade com a condição de reconhecer na instituição dos direitos do homem os sinais do nascimento de um novo tipo de legitimidade e de um espaço público no qual os indivíduos são tanto produtos quanto instigadores; com a condição de reconhecer, simultaneamente, que esse espaço só poderia ser devorado pelo Estado ao custo de uma violenta mutação que daria nascimento a uma nova forma de sociedade.” 10

São os enunciados que sempre são tomados como alvo dos críticos dos direitos do homem, particularmente o mais virulento entre eles, Marx, que persegue todos os sinais do individualismo e do naturalismo para lhes atribuir uma função ideológica. Na liberdade de ação, na liberdade de opinião, garantidas a cada um, na segurança individual, Marx só demarca a instalação de um novo modelo que consagra ‘a separação do homem com o homem’ e, mais a fundo, ‘o egoísmo burguês’.11

Lefort alega que Marx ignora a subversão das relações sociais e políticas encoberta pela representação dos direitos. Para ele, os direitos do homem suscitam uma nova rede de relações entre os homens, a sociedade democrática. Reivindica Tocqueville como precursor, que foi além nessa análise. Entre outros, Lefort influenciou Tarso Genro, atual prefeito de Porto Alegre e teórico – além de importante dirigente do PT brasileiro – de formulações – defensivas – da “sociedade democrática” e do Estado de Direito:

«Abordarei o tema ‘instituições políticas do socialismo’ como instituições políticas de um Estado democrático de direito, que abram perspectivas para um projeto socialista democrático, e não como instituições de um Estado ‘totalmente outro’, para usar uma expressão de Claude Lefort. Faço isso porque acredito ser arriscado avançar mais do que isso. Diante da total inoperância dos sovietes, parece imprudente partir dessa instituição política da democracia direta para pensar um novo Estado. […] É necessário, pois, reinventar a democracia para repor a confiança da sociedade nas instituições políticas do Estado democrático»,

Não se pode negar a clareza do posicionamento de Genro, que recusa o caminho dos sovietes (ou seja, de um Estado operário) para optar pela democratização radical do Estado burguês.

Outros teóricos, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, defensores do que chamam de “revolução democrática” – na verdade outro nome para a democratização radical do Estado – tiveram grande influência na esquerda latino-americana, utilizando praticamente os mesmos argumentos.

A discussão entre Mouffe e Laclau parte da questão do que eles chamam de “reducionismo de classe”. Em seu texto “Hegemonia e radicalização da democracia”, esses autores afirmam que:

(…) “a alternativa da esquerda deve consistir em se posicionar plenamente no campo da revolução democrática (…). Do ponto de vista da determinação dos antagonismos fundamentais, o obstáculo básico tem sido, como vimos, o caráter de classe – ou seja, a ideia de que a classe operária representa o agente privilegiado no qual reside o impulso fundamental da mudança social...” 12

A conclusão sobre a revolução democrática é que ela não é necessária no momento da tomada do poder, a não ser nos termos que Bernstein propunha (vide acima), ou seja, no caso de um regime em que a liberdade civil esteja comprometida; para Laclau e Chantal Mouffe, não se trata de uma revolução social contra o sistema capitalista de classes, pois isso seria, segundo eles, cair em uma visão reducionista. Seus autores preferem se posicionar no campo da democratização radical da sociedade, que nada mais é do que a ampliação dos direitos sociais e políticos, a reforma do Estado vigente – isto é, o aperfeiçoamento dentro dos marcos do Estado, desde que este seja democrático de direito.

A importância de suas elaborações pode ser vista pela influência nas propostas da maioria do PT brasileiro, que estão explicitadas nas resoluções do primeiro Congresso, em 1991:

Para o PT, o socialismo é sinônimo de radicalização da democracia. […] Por isso, encaramos a democracia política, econômica e social como a base constitutiva de nossa sociedade. O socialismo pelo qual o PT almeja prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas […]. Nossa perspectiva, entretanto, não se limita à democratização e à socialização da política apenas a partir do Estado. Nosso objetivo é construir, no socialismo, uma esfera pública na qual a ‘política’ não se restrinja às iniciativas estatais-institucionais,… na perspectiva de que a população se aproprie de funções hoje reservadas às esferas estatais-institucionais, exercendo em plenitude uma nova cidadania.” 13

Reforma ou revolução? A atualidade da crítica de Rosa Luxemburgo

Para Bernstein, revolução era sinônimo de “blanquismo” – no capítulo II, item b de seu livro Marxismo e Blanquismo, ele afirma:

Na Alemanha, Marx e Engels, trabalhando sobre a base da dialética hegeliana, chegaram a uma doutrina muito semelhante ao blanquismo. 14 O herdeiro da burguesia só poderia ser sua contrapartida mais radical, o proletariado, esse produto intrínseco da economia burguesa. As exigências da vida econômica moderna eram totalmente desprezadas e a força relativa das classes e suas práticas de desenvolvimento eram completamente superestimadas. Ainda o terrorismo proletário – o qual, dado o estado das coisas na Alemanha, poderia apenas manifestar-se em forma destrutiva e, portanto, desde o primeiro dia em que estivessem atuando dessa forma especificada – contra a democracia burguesa.

Bernstein esclarece que não se refere apenas ao aspecto de formar ligas secretas e buscar golpes rápidos para tomar o poder, típico do blanquismo.

O blanquismo assemelha-se mais a uma teoria do que a um método; seu método, por outro lado, é simplesmente a conclusão, o resultado de uma determinada teoria implícita, bem mais profunda. E essa é simplesmente a teoria da potência inconmensuravelmente criativa da força política revolucionária e de sua manifestação, a expropriação revolucionária.15

Mas, claro, isso é impossível. Para ele, a revolução operária está, por definição, associada a uma aventura ultraesquerdista, “destrutiva” por se confrontar com a democracia; segundo ele, a doutrina revolucionária despreza a situação real da economia moderna, o desenvolvimento das classes e, sobretudo, a democracia burguesa.

A grande revolucionária Rosa Luxemburgo respondeu a essa posição em um texto que continua atual frente aos argumentos de seus herdeiros políticos:

Bernstein, ao demonstrar a conquista do poder político como teoria blanquista da violência, tem a infelicidade de rotular como erro blanquista aquilo que sempre foi o pivô e a força motriz da história da humanidade. Desde a primeira aparição das sociedades de classes, com a luta de classes como conteúdo essencial de sua história, a conquista do poder político sempre foi o objetivo das classes em ascensão.16

É por isso que a concepção da conquista de uma maioria parlamentar reformista é um cálculo de espírito tipicamente burguês liberal, que se ocupa apenas de um aspecto – o formal – da democracia, mas não considera o outro: seu verdadeiro conteúdo. Definitivamente, o parlamentarismo não é um elemento socialista que impregna gradualmente o conjunto da sociedade capitalista. Ao contrário, é uma forma específica do Estado de classe burguês, que ajuda a amadurecer e desenvolver os antagonismos existentes do capitalismo.17

Entretanto, nesse aspecto, a ideia de revolução operária, socialista – tão clara em Marx e Engels e tão questionada há um século por Bernstein – sofre hoje ataques muito semelhantes por parte de correntes, dirigentes e intelectuais que se reivindicam marxistas ou socialistas. A moda atual é iniciar uma luta por valores, afirmando que qualquer confronto radical ou enfrentamento entre as classes é radicalismo que não leva a nada, apenas ao autoritarismo ou ao totalitarismo.

Hoje, é comum ver diversos dirigentes, cientistas sociais, políticos ou filósofos alegarem que, em função das mudanças sociais e do avanço tecnológico, seria inviável qualquer projeto de revolução. Alguns, como Offe e Habermas, partem do “fim da sociedade do trabalho”; outros, dos novos sujeitos sociais para construir a “soberania popular descentralizada” ou ainda da utopia da razão. Mas todos têm em comum a negação, como autoritária e destrutiva, da revolução socialista.

A visão idealista de Bernstein

A última ideia que coroou a tentativa de Bernstein de esvaziar o marxismo de toda a sua força enquanto concepção de mundo – e que hoje possui inúmeros seguidores – é a visão do socialismo como ideia moral, e não como necessidade material. O socialismo enquanto realização moral, enquanto difusão de valores universais e atemporais, partia, para Bernstein, de sua recusa em aceitar a ideia de “objetivo final” como meta a serviço de uma classe. Embora nesse ponto ele não fosse propriamente original (basta lembrar os socialistas utópicos), também foi ele quem diferenciou e deixou um legado para todos seus sucessores reformistas: como buscar suavizar o antagonismo de classe com a burguesia e como apontar as “baterias” para os marxistas revolucionários, apelando à moral e aos valores eternos.

Em uma citação publicada na Vorwärts, periódico social-democrata alemão, Bernstein dizia que via o objetivo final do socialismo não como um futuro estado de coisas, mas como um conjunto de princípios que regeria o cotidiano da atividade política no Partido18. A atividade política seria, segundo ele, regida por princípios atemporais que funcionavam como imperativos morais ao estilo kantiano: “o ponto de desenvolvimento econômico atingido hoje deixa aos fatores ideológicos e particularmente aos éticos um espaço bem maior para a atividade independente do que era o caso antes”; não por acaso ele fechava esse trabalho com um apelo por “um retorno a Kant”.

Essa é a outra faceta do pensamento de Bernstein que exerce influência poderosa hoje no campo da esquerda. A ideia de conquistar uma sociedade justa pela propaganda dos valores da ética e da justiça.

Habermas, renomado filósofo alemão – cuja influência se estende não só entre os verdes e social-democratas de seu país, mas também em âmbito mundial – defende a ação comunicativa e o diálogo racional entre todos os cidadãos como instrumentos na luta de classes, considerada obsoleta. Ele direciona seus esforços para buscar, através da filosofia política, um direito racional e normas éticas universais que permitam um exercício democrático renovado, livre das determinações impostas pelo poder econômico (ou de mercado) ou pelo Estado (poder administrativo).

Para tanto, apela à participação e à liberação do “mundo da vida” (os homens comuns), supostamente mais imunes às intervenções do mercado e da burocracia, e que poderiam chegar a um “consenso racional”, como se fosse possível isolar essas esferas da organização capitalista da sociedade. O peso dado ao “diálogo” e à construção de uma ética superior, transmitida a todos a partir desse “consenso”, levou os seguidores de Habermas a se limitarem a uma luta pela ampliação do direito e dos valores éticos.

Os ecos dessa posição chegam também ao outro lado do mundo, para aqueles que apelam à em sua militância à ética na política. José Genuino, presidente em exercício do PT (2002-2005), diz: “Ao contrário da pretensão universalista do neoliberalismo e do socialismo do passado,… o que deve ser universalizado são alguns valores, alguns objetivos e alguns direitos comuns a todos os seres humanos…”. Coerente com essa formulação, sua proposta para o Brasil resume-se a postular “a democracia republicana”. 19

Podemos dizer que, se há alguma diferença entre esses reformistas de hoje e Bernstein, é que eles são ainda mais claros que ele em sua inspiração kantiana ou rousseuniana. A aposta em uma ética racional leva-os a intermináveis debates sobre um direito universal.

Bernstein começou a elaborar as implicações idealistas de sua posição em Socialismo evolucionário. Não chegou a rejeitar completamente o materialismo nem se declarou um idealista. Mais tarde, em um ensaio intitulado O socialismo científico é possível?, Bernstein deixou clara sua posição. Após reiterar que a tese do “colapso do capitalismo” e, portanto, da necessidade histórica do socialismo é incapaz de ser comprovada cientificamente, ele foi além, afirmando que nenhum tema de pensamento é científico “quando seus objetivos e pressupostos incluem elementos que estão fora dos limites do conhecimento desinteressado” e que o socialismo é um sistema de pensamento que contém justamente esses elementos – ou seja, um conjunto de objetivos que não expressam os resultados de uma investigação científica, mas os interesses da classe operária. A ciência, sendo mera cognição, não poderia mover os homens para a ação; e, por essa razão, o socialismo, como um movimento que tem objetivos a ser conquistados – um movimento rumo ao que deveria ser – não poderia ser científico. 20

Rosa Luxemburgo contestou, argumentando que, para os socialistas, a ciência seria uma questão de demonstrar o que é “objetivamente necessário” no sentido histórico, e que a atividade prática era científica na medida em que fosse guiada pelo reconhecimento da necessidade objetiva, em oposição a qualquer ideia preconcebida do que deveria ser.

Bernstein não gosta que se fale de uma ‘ciência do partido’, ou mais precisamente, de uma ciência de uma classe, assim como não quer que se fale do liberalismo de uma classe ou da moral de uma classe. Ele acredita conseguir expressar a ciência humana em geral, abstrata, o liberalismo abstrato, a moral abstrata. No entanto, dado que a sociedade é composta por classes que possuem aspirações e concepções diametralmente opostas, uma ciência humana em geral, um liberalismo abstrato, uma moral abstrata, são, na realidade, ilusões, pura utopia. A ciência, a democracia, a moral – que Bernstein considera gerais, humanas – são, na verdade, nada mais que a ciência, a democracia e a moral dominantes, ou seja, burguesas.21

Ela acrescentava que, segundo Bernstein, a consciência de classe do proletariado deixaria de ser “um simples reflexo intelectual das contradições crescentes do capitalismo e de seu declínio progressivo” e, ao invés disso, passaria a ser “apenas um ideal cuja força persuasiva reside unicamente nas imperfeições a ele atribuídas”. Não bastava ao proletariado reconhecer que, medido por certos princípios éticos, o sistema capitalista é defeituoso. Portanto, ao ver o socialismo não como uma necessidade histórica, mas como uma condição de compromisso moral, Bernstein teria “oferecido uma explicação idealista do socialismo”.

Ele respondeu: “Eu, francamente, admito que tenho muito pouca inclinação ou interesse pelo que geralmente se chama ‘objetivo final do socialismo’. Esse objetivo, independentemente do que seja, não significa nada para mim; o movimento é tudo”. 22 Bernstein, com essa frase, desprezava a noção essencial para os marxistas, que é um programa revolucionário e uma estratégia de classe que deveria dar sentido a toda a prática política e às táticas que o partido adotaria. Ao priorizar os objetivos imediatos, perder-se-ia a perspectiva histórica e a própria razão de ser do partido socialista revolucionário, transformando-o num movimento por pequenas conquistas, devido à integração na ordem vigente. O destino potencial da social-democracia é a maior prova dessa contradição da qual não se pode escapar.

Bernstein e a colonização: a posição frente ao imperialismo

Outra questão na qual Bernstein tentou se justificar teoricamente na esquerda para a adaptação ao capitalismo europeu foi sua posição em relação ao imperialismo, sobre a questão colonial. Os parágrafos seguintes são extraídos de seu artigo publicado em 1900, “O socialismo e a questão colonial”:

Medindo-se com esse padrão, a cultura superior possui sempre em face da cultura inferior, sob condições iguais, em circunstâncias diversas, o Direito incondicional do seu lado, em verdade, possui o dever de subjugar a cultura inferior.

Não se pode conceder a nenhuma tribo, a nenhum povo, a nenhuma raça, o direito incondicional a qualquer parte de terra habitada. A terra não pertence a nenhum mortal. Ela é propriedade e herança do conjunto da humanidade.

Tão interessados quanto possam ser os representantes das culturas inferiores, originários, pelos etnólogos, não hesitará o sociólogo, por nenhum instante, em declarar como sendo necessária e justa, em sentido histórico mundial, sua perda de terreno em face dos representantes das culturas superiores.23

Como se vê, já aparece nitidamente a ideia do direito de uma cultura “superior” dispor das riquezas e do território das “inferiores”. A comparação com os social-democratas de hoje é gritante. E não apenas com as correntes que estão no governo, mas com uma gama de posições chamadas de esquerda.

Habermas, bastante ouvido pelos social-democratas e verdes alemães, promoveu uma campanha em defesa do Patriotismo Constitucional – orientação que ele já havia defendido na época da Guerra na ex-Iugoslávia, justificando sua posição a favor da intervenção militar do imperialismo quando se tratava de enfrentar “nações desprovidas de Direito Constitucional e liberdades fundamentais”.

“Naturalmente, os EUA e os Estados-membros da União Europeia, que possuem responsabilidade política, partem de uma posição comum. Após o fracasso das negociações de Rambouillet, eles executam a ação punitiva militar contra a Iugoslávia com o objetivo declarado de impor regulamentações liberais para a autonomia de Kosovo, no interior da Sérvia. No âmbito do Direito Internacional Público clássico, esse ato seria visto como intromissão nos negócios internos de um Estado soberano – isto é, enquanto violação da interdição de intervenção. Sob as premissas da política de Direitos Humanos, essa ingerência deve ser entendida como uma missão armada que gera, porém, por obra da comunidade dos povos (tacitamente, também sem um mandato da ONU) – a paz autorizada.24

Segundo essa interpretação ocidental, a Guerra de Kosovo poderia significar um salto do Direito Internacional Público clássico para o Direito Cosmopolita de uma sociedade civil mundial.

Apesar de Habermas concentrar sua utopia na busca de uma compreensão comum e de uma ética universal, isso não o impede, em caso de guerra – e, portanto, de “necessidade imperativa” – de disputar com os europeus burgueses a necessidade de violar a soberania de países periféricos em nome da ética racional e do direito cosmopolita de uma sociedade civil mundial, da futura “Sociedade de Cidadãos do Mundo” (?!), ou do “patriotismo constitucional”, o qual hoje se apresenta e é exercido, claramente, pela vontade de um punhado de grandes potências imperialistas.

Seu raciocínio é, evidentemente, muito semelhante às elucubrações de Bernstein sobre a cultura superior. Quem define o que é a “cultura superior” ou onde reside o “direito internacional da sociedade civil dos cidadãos do mundo” é o G-7, ou o governo dos EUA. O mesmo argumento pode ser usado hoje contra o Afeganistão ou qualquer inimigo do imperialismo, considerado o guardião da civilização e dos “valores” ocidentais. Ou, se usássemos os argumentos de Bernstein, é progressista, onde prevalece uma cultura “inferior’, que se imponha a vontade dos “civilizados” e “superiores” europeus.

Civilização ou barbárie: o caráter benigno da colonização para os social-democratas

Nesse mesmo texto sobre as colônias, Bernstein defende uma ideia muito cara aos “humanitários” de hoje, mas que havia sido antecipada por alguns representantes do liberalismo burguês.

Tocqueville, o liberal burguês que é o ídolo de alguns desses teóricos, como Lefort, alertava seus compatriotas, já no século XIX, sobre o perigo de provocar entre os árabes a ilusão ou a pretensão de que poderiam ser tratados “como se fossem nossos concidadãos ou nossos iguais”. A ideia de igualdade entre os homens não poderia se estender ao ponto de incluir os “povos semicivilizados”.

Em uma carta, antecipando de forma notável o discurso do imperialismo na guerra atual contra o Afeganistão, Tocqueville escrevia: “a recaída da Índia na barbárie seria desastrosa para o futuro da civilização e para o progresso da humanidade”. Por isso, depositava sua esperança em uma repressão eficaz por parte dos ingleses, o império hegemônico da época: “hoje em dia quase nada é impossível para a nação inglesa, se ela empregar todos os seus recursos”. 25

Também hoje, quando social-democratas como Blair, Jospin ou Schröder apoiam o lado da “civilização contra a barbárie”, como o ataque norte-americano ao Afeganistão em nome do “direito à legítima defesa” de Bush; quando os “pacifistas” Verdes da Alemanha servem de embaixadores imperiais, como orgulhosamente fez o ministro Joschka Fischer, para negociar com os países vizinhos como fechar o cerco ao Afeganistão; quando o PDS de D’Alema, na Itália, apoia a intervenção dos EUA e mesmo assim quer aparecer como pacifista, podemos constatar que o cinismo defensor da colonização e a postura pró-imperialista de Bernstein têm inúmeros herdeiros, um século depois, entre aqueles que se dizem de esquerda, socialistas ou comunistas.

As consequências do reformismo, ontem e hoje

A verdade é que os resultados práticos da posição reformista não ajudam a defender a posição bernsteiniana e de seus sucessores envergonhados. Em primeiro lugar, o reformismo desorienta a classe em sua luta contra a burguesia, alimenta a crença nas instituições; em vez da desconfiança e da intransigência classista; faz a classe acreditar em uma via pacífica e gradual a cujos fracassos se segue uma desmoralização política quando a utopia se mostra inviável. Recordemos o processo da luta de classes alemã e europeia quando a Primeira Guerra Mundial estourou. A divisão instalou-se entre os trabalhadores por culpa da direção social-democrata, justamente quando mais necessitavam de sua unidade internacionalista.

Mas o problema assume contornos ainda mais graves quando os governantes sociais democratas e todas as demais variantes reformistas, coerentes com essa concepção, assumem a gestão do Estado burguês para “democratizá-lo” e acabam por defendê-lo, bem como a ordem que propõem reformar. Os reformistas, como Bernstein, alertam contra o perigo de uma “revolução prematura”. Aconselhavam o caminho “mais lento e seguro” das reformas graduais. E aqueles que querem revolucionar esse Estado, destruir a ordem burguesa – os marxistas revolucionários – acabam sendo tratados por eles como “inimigos da democracia”. O assassinato de Rosa Luxemburgo, perpetrado sob um governo social-democrata durante o processo revolucionário que explodiu na Alemanha ao final da I Guerra Mundial, foi a dramática expressão dessa lógica infernal da posição reformista e de seu antagonismo em relação à revolução.

O papel dos atuais governos social-democratas e laboristas na Europa; dos defensores destacados da reconversão econômica em seus países para adaptá-los às diretrizes de Maastricht – a antiga coalizão de L’Olivo na Itália com o PDS, o Partido Comunista Italiano, à frente da aliança em defesa dos planos econômicos “para implantar o euro” e da diminuição do Estado -; dos governos estaduais e municipais do PT brasileiro com sua aplicação da política do FMI em nome do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, são expressões dessa concepção. Seu posicionamento leva-os a confrontar as aspirações dos movimentos de massa e, consequentemente, a recorrer a políticas de austeridade para defender a ordem em nome da democracia. É a demonstração do vínculo entre teoria, programa e política.

Porém, a realidade da ofensiva imperialista colonizadora, inerente à chamada globalização, coloca a questão do reformismo não somente diante da opção de estar ou não a favor da democratização do Estado nacional, mas também de estar a favor da destruição ou da reforma do imperialismo, das instituições internacionais e de uma articulação europeia em contraposição aos EUA: posicionam-se como a alternativa dos cidadãos contra os mercados. Essa corrente diferencia-se dos desgastados governos da Terceira Via e inclui setores críticos da social-democracia, como o ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder, Oskar Lafontaine, ONGs, a ATTAC, o jornal Le Monde Diplomatique e correntes oriundas do trotsquismo e do marxismo revolucionário, que têm em comum a proposta de uma maior regulação do fluxo de capitais (a Taxa Tobin), o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário (proposta que até George W. Bush defende atualmente como medida contra os grupos terroristas).

Lafontaine propõe que a Europa reforce seus laços e “utilize seu poder frente à Wall Street”. E que a ONU adquira mais vigor na hora de aplicar os direitos humanos. 26 Essa corrente contrapõe a atuação conjunta da ONU à ação isolada dos EUA. Mas não conseguem sair dos tópicos já batidos das medidas relacionadas à ordem financeira, à ampliação das prerrogativas da ONU e à reforma das atuais instituições internacionais. Para eles,é possível que o imperialismo europeu tenha uma postura mais “social” ou “progressista” do que o norte-americano.

Hoje, ser reformista implica não só aceitar o status quo em seu país, mas, em nome de uma mudança gradual, aceitar na prática a ordem imperialista. Esse neorreformismo termina por desarmar os movimentos que se radicalizam contra o imperialismo, ao optar por um caminho propositivo de criação de “espaços democráticos no mundo”, ou seja, por reformas “viáveis” dentro do capitalismo globalizado. Por isso, como evidencia a guerra contra o Afeganistão, o século XXI começou com uma disjuntiva para a esquerda: reforma da ordem imperialista ou revolução mundial.


NOTAS

  1. Para fortalecer suas posições, Bernstein utilizava o papel de executor testamentário das obras de Engels, posto que dividiu com outro grande dirigente e teórico do SPD, Kautsky. Apesar de alguns momentos e posições ocasionalmente mais principistas – como o voto contra os créditos de guerra em 1915 – ele foi a primeira grande referência teórica e programática para aqueles que, dentro do movimento operário, abandonavam os princípios essenciais do marxismo. Seu apogeu como teórico da social-democracia ocorreu no Congresso de Giirlitzer, em 1921, quando foi um dos redatores e inspiradores do programa votado que rompeu totalmente com o marxismo revolucionário e tornou o partido num partido abertamente reformista, que até hoje serve de referência ao SPD alemão. ↩︎
  2. Esse foi o título do trabalho mais ambicioso de Bernstein (publicado no Brasil com o nome Socialismo evolucionário, pela Jorge Zahar Editor), escrito em resposta às críticas de militantes e dirigentes a seus artigos na imprensa, publicado pela primeira vez em 1899. Dele extraímos a maior parte das citações aqui utilizadas, na edição inglesa de Henry Tudor, Preconditions of Socialism, Cambridge, 1996. ↩︎
  3. Rosa Luxemburgo enfrentou essa questão em “Reforma o revolución – Obras escogidas”, Tomo. I. Bogotá: Pluma, 1979, p. 137 ↩︎
  4. Welmowicki, José. “Fórum Social Mundial: morte ao capitalismo ou capitalismo cidadão?” em Marxismo Vivo N. 3, (maio de 2001), p. 14 ↩︎
  5. Recentemente, o ex-ministro alemão Lafontaine esteve presente em um congresso da ATTAC para apoiar a proposta da entidade: “O ex-ministro das Finanças e da Fazenda do primeiro governo Schröder pediu uma maior regulação do tráfego de capitais, o que agora, curiosamente, George W. Bush defende como medida contra os grupos terroristas. ‘Reclamamos o fim dos paraísos fiscais e do segredo bancário, que só favorecem quem quer evadir impostos’, explicou Lafontaine. Ele instou a Europa a reforçar seus laços e a utilizar seu poder frente à Wall Street. O ex-líder social-democrata também se referiu à necessidade de que a ONU adquira mais vigor na aplicação dos direitos humanos. ‘É preciso criar as condições sociais e econômicas adequadas para a paz, não só autorizar a guerra’, ressaltou Lafontaine. Após o 11 de setembro, Lafontaine destacou que fica mais claro que ‘a mais desigualdade, mais violência e mais terrorismo’, daí a necessidade do trabalho de movimentos como a Attac, que o ex-ministro alemão apoia.” Fonte: El País, 23/10/01 ↩︎
  6. In: http://www.spd.de/events/congress/ ↩︎
  7. Bernstein, “Preconditions”, p. 141. ↩︎
  8. Luxemburgo, R., op. cit., p. 136. ↩︎
  9. “Em princípio, a democracia é a abolição do governo de classe, embora ela não seja em si a abolição das classes”, p. 143. ↩︎
  10. Lefort, Claude. Pensando o Político, p. 47, idem, p. 49. ↩︎
  11. Idem, p. 49 ↩︎
  12. “Laclau, Ernesto, MOUFFE, Chantal. In Hegemonía y estratégia socialista. Madrid: Siglo XXI, 1987.” ↩︎
  13. “Partido dos Trabalhadores: Resoluções, Encontros, Congressos. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1998.” ↩︎
  14. Blanquismo era o nome de uma corrente que defendia a tomada do poder pelos operários oprimidos através de um golpe conduzido por uma minoria selecionada de revolucionários bem preparados, posição sempre criticada por Marx em seus escritos. Seu nome deve-se ao revolucionário francês Louis Blanqui, que teve papel destacado nas revoluções de 1830, 1848 e na Comuna de de Paris, em 1871. ↩︎
  15. Bernstein, L. Preconditions…, p. 38. ↩︎
  16. Luxemburgo, Rosa, op. cit., p. 123. ↩︎
  17. Idem, p. 90. ↩︎
  18. Tudor, H. and Tudor, Introduction to Preconditions of Socialism. Cambridge, 1996, p. xxx. ↩︎
  19. Este foi o título da Tese da corrente de Genoíno ao II Congresso do PT. ↩︎
  20. Tudor, H. and Tudor, p. xxxiv ↩︎
  21. Luxemburgo, op. cit., p. 135. ↩︎
  22. Tudor, H. and Tudor, p. xxviii ↩︎
  23. “Bernstein, El Socialismo e as Colônias, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman.” ↩︎
  24. Habermas, J. Brutalidade e Humanidade. Uma guerra entre o direito e a moral. 1999, tradução de Emil von Munchen, Instituto José Luiz & Rosa Sunderman. ↩︎
  25. Idem, p. 28. ↩︎
  26. El País, 23/10,2001 ↩︎

Publicado em dezembro de 2001 na revista Marxismo Vivo N. 4

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