Leon Trotsky e a questão negra
Como já dissemos, não conhecemos nenhum caso em que a III Internacional, na época de Lenin, tenha convocado a organização de forma separada das operárias ou que tenha impulsionado a organização dos oprimidos a partir da opressão. Por Alicia Sagra e José Welmowicki Mas há um exemplo utilizado como argumento pelo Freedom Socialist Party para

Como já dissemos, não conhecemos nenhum caso em que a III Internacional, na época de Lenin, tenha convocado a organização de forma separada das operárias ou que tenha impulsionado a organização dos oprimidos a partir da opressão.
Por Alicia Sagra e José Welmowicki
Mas há um exemplo utilizado como argumento pelo Freedom Socialist Party para afirmar que a orientação de convocar organizações autônomas de mulheres, negros, LGBTI, etc., está inserida na tradição do trotsquismo. Trata-se da proposta que Trotsky fez para os EUA, de impulsionar a construção de uma organização negra.
O direito à autodeterminação
O problema negro foi algo ao qual Trotsky deu muita atenção. Assim foi na África do Sul, onde propôs a “república negra”. Na mesma época, dedicou-se a estudar o tema nos EUA, onde acompanhava a construção do SWP.
Chegou à conclusão de que os negros norte-americanos eram uma nação oprimida e que, portanto, o que se propunha era o direito à autodeterminação. Essa definição foi polêmica no SWP, e resultou de várias discussões na década de 1930. No início da década, em uma dessas discussões, Trotsky argumentava:
“Sobre essa questão, um critério abstrato não é decisivo: o que é mais decisivo é a consciência histórica, seus sentimentos, suas determinações… A tomada de consciência ainda não ocorreu entre os negros, e estes ainda não se unem aos trabalhadores brancos. 99,9% dos trabalhadores norte-americanos são racistas, são os carrascos dos negros, assim como dos chineses… É necessário fazer os negros compreenderem que o estado americano não é o estado deles e que não precisam se tornar os guardiões desse estado. Os operários norte-americanos que dizem: ‘Se os negros querem viver separados, nós os defenderemos contra nossa polícia norte-americana‘, são os verdadeiros revolucionários. Tenho confiança neles. O argumento de que a palavra de ordem de autodeterminação se afasta do ponto de vista de classe representa uma adaptação à ideologia dos trabalhadores brancos.” 1
Àqueles a quem se apontava que os negros não reivindicavam esse direito, ele respondia:
“Se os negros não estão exigindo agora o direito à autodeterminação, é, supostamente, pela mesma razão que os operários brancos ainda não estão propondo a defesa da ditadura do proletariado. Os negros ainda não internalizaram que podem ousar tomar uma porção dos grandes e poderosos Estados Unidos para si.” 2
A organização negra
Em abril de 1939, como parte das discussões com a direção do SWP sobre a questão negra, Trotsky explica a importância do tema do ponto de vista de onde e com quem o partido deveria ser construído:
“As antigas organizações, começando pela AFL, são organizações da aristocracia operária. Nosso partido faz parte do mesmo meio, não da base das massas exploradas, das quais os negros são a camada mais explorada. Que, até o presente, nosso partido não tenha se concentrado no problema negro é um sintoma inquietante. Se a aristocracia operária é a base do oportunismo, uma das fontes de adaptação à sociedade capitalista, então os mais oprimidos e discriminados representam o meio mais dinâmico da classe operária.” 3
“Devemos dizer aos negros conscientes que o desenvolvimento histórico os chama para se tornarem a vanguarda da classe operária. O que freia as camadas superiores? São os privilégios, o conforto é o que os impede de se tornarem revolucionários. Isso não existe para os negros. O que pode transformar uma certa camada, torná-los mais capazes de ações corajosas e espírito de sacrifício? Isso se concentra nos negros. Se nós, no SWP, não conseguirmos encontrar o caminho para essa camada, então não seremos dignos. A revolução permanente e tudo o mais não passam de mentiras.” 4
Nessa discussão, como parte de sua insistência para que se abordasse o problema negro e na busca desse caminho, Trotsky, que continuava defendendo o direito à autodeterminação, apoia, além disso, a proposta de CLR James, que defende a construção de uma organização negra. Trotsky afirma que a proposta é inovadora e sem precedentes, e que se trata de uma “tática especial para uma situação especial”.
Qual era essa situação especial?
As condições de vida dos negros nos EUA, sobretudo nos estados do Sul: a cultura comum que os une, a segregação no transporte, nas escolas, nos empregos, em muitos sindicatos e na própria classe operária, visto que se considerava que 99% dos trabalhadores brancos eram racistas. Trotsky explica a proposta da seguinte forma:
“(…) [Os negros] Foram reduzidos à escravidão pelos brancos, foram libertados pelos brancos (a suposta libertação). Foram conduzidos e enganados pelos brancos e não tinham sua própria independência política. Eles precisavam, enquanto negros, de uma atividade preparatória para a política. Em teoria, parece-me absolutamente claro que é preciso criar uma organização especial para responder a uma situação especial (…) Nosso movimento conhece muitas formas de organização, como o partido, o sindicato, a organização educativa, a cooperativa; mas esta é um novo tipo de organização que não coincide com as formas tradicionais. Devemos considerar a questão de todos os pontos de vista para decidir se é ou não acertado e qual deveria ser a forma da nossa participação nessa organização (…) É para despertar as massas negras. Isso não exclui a captação. Creio que o sucesso é muito possível, embora eu não tenha certeza. Mas deve ficar claro que nossos camaradas nessa organização devem ingressar como um grupo.” 5
Meses depois, em julho de 1939, o II Congresso do SWP votou duas resoluções apresentadas por CLR James, uma propondo o direito de autodeterminação para o povo negro e outra propondo a formação de uma organização negra.
Qual é o significado dessa orientação proposta por Trotsky?
Como já dissemos, o Freedom Socialist Party (FSP) dos EUA argumenta que o chamado a essa organização negra é uma prova de que Trotsky orientava a organização dos oprimidos como tal. Não nos parece que seja assim. Ele não propôs, por exemplo, uma organização dos trabalhadores imigrantes chineses — os quais ele mesmo afirma terem sido muito maltratados nos EUA. Tampouco convocou uma organização de mulheres, apesar de não desvalorizar a opressão que estas sofriam.
Temos a impressão de que o chamado a essa “organização negra” foi, como ele manifestou, uma “tática especial para uma situação especial”, que estava intimamente ligada à sua visão dos negros como uma nacionalidade oprimida e à política central de “autodeterminação” que ele vinha defendendo. Seguindo esse raciocínio, parece-nos que essa organização, que ele não consegue definir bem o que é, mas que afirma ser diferente de tudo o que já existiu, tem mais a ver com a organização do povo negro como nação, isto é, a organização de uma nação que não tinha um território próprio.
Essa organização nunca se concretizou e não há nada escrito sobre o tema, além daquela conversa com o SWP. Portanto, é difícil precisar mais.
O que nos parece evidente é que Trotsky teve um grande acerto em sua insistência para que se abordasse o problema negro, e que essa insistência foi muito importante para a inserção do SWP nas lutas contra a opressão racial durante a Segunda Guerra e durante as grandes mobilizações pelos direitos civis na década de 60. Em relação às mobilizações dos anos 30, Cannon, em seu trabalho A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, relata que foi dessa revolução que surgiu o incentivo para que os revolucionários abordassem o problema negro. Que os trotskistas o abordaram, ainda que fossem muito pequenos, mas que o Partido Comunista, que se lançou de forma intensa (apesar de sua condução stalinista), realizou um grande trabalho a favor do movimento negro e obteve excelentes resultados em sua construção.
Apesar de se tratar de uma espécie de balanço, Cannon não faz nenhuma referência ao chamado à organização negra. Mas refere-se ao direito à autodeterminação:
“A palavra de ordem de “autodeterminação” encontrou pouca ou nenhuma aceitação na comunidade negra. Após o colapso do movimento separatista dirigido por Garvey, 6 sua tendência foi principalmente para a integração racial com igualdade de direitos.” 7
Seria tema de outro artigo analisar a política aconselhada por Trotsky para o movimento negro dos EUA. O que nos parece, de fato, é que não é correto tomar um aspecto isolado dessa política (o chamado a uma organização negra), que ele define como uma “tática especial para uma situação especial”, como se essa fosse sua orientação geral para os setores oprimidos.
Notas
- – Trotsky, L., “On Black Nationalism and Self-determination”, 28 de fevereiro de 1939, reeditado em: Leon Trotsky on Black Nationalism and Self-determination. Pathfinder Press, 1971. ↩︎
- Idem ↩︎
- Trotsky, L, Plans for the Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
- Idem. ↩︎
- Trotsky, L, A Negro organization, em On Black Nationalism: documents on the Negro struggle ↩︎
- Garvey, Marcus Mosiah (1887-1940). Líder negro jamaicano. Figura emblemática do movimento negro. Nos EUA, propunha a saída de todos os negros do país para formar uma república própria na África, visto que a integração era impossível. ↩︎
- Cannon, James Patrick. A Revolução Russa e o movimento negro norte-americano, 1959. ↩︎