Sobre a organização dos oprimidos
No artigo A teoria da revolução permanente, as tarefas democráticas e a luta dos oprimidos, referimo-nos à polêmica com o SWP dos anos 1970 e com outras correntes do trotskismo que reivindicavam a organização autônoma das mulheres e de outros setores oprimidos, ultrapassando a fronteira de classe. Esse tema não foi polêmico no seminário, pois

No artigo A teoria da revolução permanente, as tarefas democráticas e a luta dos oprimidos, referimo-nos à polêmica com o SWP dos anos 1970 e com outras correntes do trotskismo que reivindicavam a organização autônoma das mulheres e de outros setores oprimidos, ultrapassando a fronteira de classe. Esse tema não foi polêmico no seminário, pois houve acordo unânime em rejeitar esse tipo de organizações de aliança de classes.
Por Alicia Sagra e José Welmowicki
Surgiu, entretanto, outra polêmica a respeito de se é correto ou não o chamado às mulheres trabalhadoras e a outros setores oprimidos dos trabalhadores para se organizarem de forma autônoma (em tudo o que se refere à luta contra a opressão). Ou seja, que existam, em nível da organização de classe, por exemplo nas centrais sindicais, organizações por opressões, não circunstanciais, mas permanentes.
O que chamou a atenção no seminário foi que tanto os que se opunham a esse tipo de organização quanto os que a defendiam, apoiavam-se nos mesmos materiais programáticos para fundamentar suas posições: a Tese sobre a propaganda entre as mulheres, votada pelo terceiro congresso da III Internacional em 1921, e a Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição de Nahuel Moreno, de 1980. Evidentemente, estamos diante de um problema de diferentes interpretações dos mesmos documentos.
Por esse motivo, precisamos aprofundar o estudo desses documentos, analisando essas definições programáticas não apenas do ponto de vista teórico-ideológico, mas também histórico: qual foi a orientação que, historicamente, nossos mestres deram à organização dos oprimidos? E por que o fizeram?
O primeiro passo é precisar o que esses documentos dizem, contrastando o texto escrito com a prática concreta daqueles que os redigiram. E, embora devamos aplicar o mesmo método para os dois documentos citados, é inegável que o documento central é o material da III Internacional, visto que todos reconhecemos que essas teses são a principal ferramenta programática para o trabalho com as mulheres.
Como não somos religiosos que seguem uma bíblia, o segundo passo – uma vez precisado o que se diz – é determinar se essas definições estão corretas na atualidade. Se foram na época, mas, devido às mudanças mundiais, já não o são, ou se sempre estiveram equivocadas.
Devemos seguir esses passos com muita precisão, pois essa discussão não é para ganhar uma polêmica nem por um interesse puramente intelectual. Nosso propósito comum está relacionado com a necessidade de enfrentar a reelaboração programática com o objetivo de atualizar nosso programa histórico.
Vamos, então, começar com o documento mais recente.
Tese XXIX de Atualização do Programa de Transição
Na referida tese, Nahuel Moreno explica:
“(…) nós estamos a favor da unidade de ação anti-imperialista; da unidade de ação das mulheres pela legalização do aborto, do divórcio ou pelo direito ao voto; da unidade de ação com qualquer partido político para reivindicar espaços iguais na rádio e na televisão; de uma manifestação, com quem for, para solicitar esses direitos democráticos contra o governo bonapartista e totalitário e mesmo democrático burguês. Mas não confundimos a unidade de ação com a formação de uma frente. Somos contrários a fazer frentes com os partidos burgueses ou pequeno-burgueses para defender a democracia, mesmo quando concordamos com eles na defesa de determinados pontos democráticos. Com o nome de ‘frente’ estruturam-se organizações que são frentes-populistas (embora, em determinados casos, possam desempenhar um papel relativamente progressista, como os movimentos nacionalistas), por envolverem distintas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia — e por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária. (…) Quando essa frente (que jamais devemos promover, pois a consideramos uma variante da frente popular) se estabelece, e nela a classe operária intervém ,ou um setor importante dela, podemos intervir, já que ela existe objetivamente, mas para desmantelá-la, para denunciá-la de dentro e para independentizar, tanto política quanto organizacionalmente, a classe operária que nela está. Isso significa que podemos intervir em um movimento nacionalista, mas com um claro sentido de denúncia da colaboração de classes e propondo a independência da classe operária (…) Essa explicação de que nós não estamos a favor de uma frente única anti-imperialista, nem antifeudal, nem feminista antimachista, democrática antiditatorial, mas sim a favor de ações anti-imperialistas, feministas, democráticas e antilatifúndio, é muito importante, pois houve uma tendência de camuflar a política frente-populista com esses nomes.”
Ao apresentar este texto, obtivemos dois tipos de resposta:
1 – Que a negativa de constituir esses frentes, conforme apresentado, refere-se somente à unidade com a burguesia (como seria o caso do SWP nos anos 70) e, portanto, não se aplica quando se trata de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras.
2 – Que aí se esboça uma proposta propagandista e sectária, que tem a ver com o fato de que Moreno não está à altura de Lenin no tema da luta contra a opressão da mulher.
Não concordamos com o primeiro ponto, pois, para nós, a posição de Moreno ao rejeitar essas frentes baseia-se em dois aspectos: 1 – “por envolver diversas classes — sobretudo a burguesia e a pequena burguesia” e 2 – “por terem objetivos que não são os da independência política da classe operária“.
Quanto ao segundo argumento, não vemos por que seria propagandista e sectário rejeitar a organização separada das mulheres e demais oprimidos e, ao mesmo tempo, lutar vigorosamente para que se organizem junto com seus irmãos de classe, batalhando nos organismos de frente única operária pela maior participação das mulheres, inclusive em seus quadros de direção. Acreditamos que essa última forma torna a luta contra o machismo mais eficaz, que é muito forte nos sindicatos, sobretudo onde a burocracia está no comando, mas não somente neles. Além disso, entendemos que essa orientação, utilizando todos os mecanismos aconselhados pela III Internacional (comissões de mulheres, jornais específicos, encontros de mulheres trabalhadoras), é a melhor para lutar para que o conjunto da classe assuma o combate contra a opressão da mulher. Em contrapartida, não nos parece que organizar as mulheres separadamente seja a melhor forma de enfrentar o machismo nos sindicatos. Isso seria o mesmo que dizer que a melhor forma de enfrentar a burocracia é se organizar separadamente nos sindicatos vermelhos.
No que diz respeito a Moreno, não acreditamos que ele tenha subestimado a luta contra as opressões. É verdade que, no que tange ao problema da mulher, nossa corrente incorporou essa política somente a partir de 1973, a partir da influência positiva do SWP dos EUA. Mas, a partir desse momento, passou a ser um tema importante que marcou, particularmente, a formação de nossos quadros femininos, cujo número e peso foram uma característica distintiva do nosso partido. Obviamente, Moreno não esteve, em nenhum aspecto, à altura de Lenin, mas, a partir de 1973, independentemente dos erros e correções, consideramos que a orientação que tivemos em relação ao trabalho com as mulheres esteve no marco das resoluções da III Internacional. E quando, no final dos anos 70, Moreno viu-se obrigado a enfrentar seus mestres do SWP, desenvolveu a polêmica com Mary Alice Waters apoiando-se nas elaborações leninistas.
De qualquer forma, consideramos que o documento programático mais completo são as Teses do terceiro congresso da III Internacional, inquestionavelmente reivindicadas por todos os participantes do seminário, por isso é nelas que devemos concentrar nossa análise.
O que essas Teses propõem
As teses foram elaboradas e apresentadas por Clara Zetkin, que em seu texto Meus lembretes de Lenin descreve suas conversas prévias com o dirigente bolchevique sobre o tema.
Há um conceito que permeia toda a tese: Só no comunismo se alcançará a libertação da mulher, e ao comunismo só se chegará pela luta conjunta de operárias e operários.
Nela, propõe-se a obrigação de todos os partidos da Internacional de realizar um trabalho sobre o proletariado feminino, tomando consciência da importância da “participação ativa das mulheres em todos os setores da luta do proletariado (inclusive em sua defesa militar), da construção de novas bases sociais, da organização da produção e da existência em conformidade com os princípios comunistas“.
Chama a atenção a importância dada a esse trabalho, preocupando-se inclusive com como desenvolvê-lo nos países do Oriente. Detalha a necessidade de recorrer a organismos especiais (comissões, seções, etc.), indica que deve ser dada especial importância ao trabalho nas fábricas e nos sindicatos, e que as frentes comunistas dos sindicatos e de outras organizações operárias devem ter organizadores e agitadores dedicados especialmente ao trabalho com as mulheres trabalhadoras. Propõe que sejam realizadas reuniões com as trabalhadoras nos ateliês, bem como em seus bairros. Ou seja, é extremamente detalhista. Mas em nenhum momento convoca as trabalhadoras a organizarem-se separadamente. Ao contrário, define-se de forma enérgica contra isso:
“Ao mesmo tempo em que se pronuncia veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, o 3º Congresso da Internacional Comunista reconhece a necessidade, para o Partido Comunista, de empregar métodos específicos de trabalho entre as mulheres e estima a utilidade de formar, em todos os partidos comunistas, organismos especiais encarregados desse trabalho.”
Esses organismos especiais a que se faz referência não têm nada a ver com organizá-las de forma separada, como demonstra a afirmação categórica com que se inicia o parágrafo. Mas, para que não reste nenhuma dúvida sobre isso, na Resolução concernente às formas e aos métodos do trabalho comunista entre as mulheres, apresentada por Alexandra Kollontai, votada no mesmo congresso, estabelece-se:
“Para que se cumpra esse objetivo, todos os partidos aderentes à III Internacional devem formar, em todos os seus órgãos e instituições, desde os mais baixos até os mais elevados, seções femininas presididas por uma integrante da direção do Partido, cujo objetivo será o trabalho de agitação, de organização e de instrução entre as massas operárias femininas (…) Essas organizações femininas não formam organizações separadas; são apenas órgãos de trabalho (…)”
Pode-se dizer que essa tese se refere ao partido, o que não está em discussão. É verdade que essa tese e a mais geral (Tese sobre a propaganda entre as mulheres) referem-se centralmente ao partido, a como conquistar mulheres trabalhadoras para o partido, a como se forma um movimento comunista de mulheres (isto é, do partido). Por esse motivo, sempre nos pareceu equivocado o argumento de que o chamado para construir organismos especiais (comissões, seções, etc.) significava que a orientação de organizar separadamente as mulheres trabalhadoras, isto é, construir organismos permanentes de unidade de ação a partir das opressões, estava no marco da III Internacional.
Porém, embora a Tese da Terceira esteja centrada no partido, ela não ignora os sindicatos. Faz duas definições nesse sentido: 1 – “No período atual, os sindicatos profissionais e de produção devem constituir, para os partidos comunistas, o campo fundamental do trabalho entre as mulheres (…)” 2 – A que já mencionamos: (O congresso da Terceira) “pronuncia-se veementemente contra qualquer tipo de organização separada de mulheres no seio do partido, dos sindicatos ou de outras associações operárias, (…)”.
Esta Tese insiste tanto na importância de manter a unidade entre as operárias e os operários que aconselha que, nas comissões de mulheres, na medida do possível, também participem homens e, de forma semelhante, no nível da formação, estabelece:
“Para desenvolver o espírito de camaradagem entre operárias e operários, é preferível não criar cursos e escolas especiais para as mulheres comunistas. Em cada escola do partido deve haver, obrigatoriamente, um curso sobre os métodos de trabalho com as mulheres.“
E tudo isso, o que se propõe para o partido e para o sindicato, está intimamente ligado à definição que Lenin faz em suas conversas com Clara Zetkin: “De nossa concepção ideológica derivam-se as medidas organizativas“. E qual é essa concepção ideológica em relação ao problema da mulher? Que somente o comunismo libertará as mulheres e que só se chegará ao comunismo pela luta unificada de operárias e operários, isto é, o conceito que, como dissemos, permeia toda a tese. Por isso, a proposta organizacional é elaborada em torno da questão de classe e não da opressão. Por isso, Lenin conclui sua frase dizendo: “Nada de organização especial da mulher comunista!“
Pode-se dizer que aqui Lenin refere-se à mulher comunista e não à trabalhadora. Mas, se não é essa a sua orientação, por que em toda a sua história nem Clara Zetkin, nem Lenin, nem a Terceira jamais convocaram as mulheres trabalhadoras para se organizarem separadamente? E não se pode dizer que não o fizeram por subestimar a luta contra a opressão. Sua política foi propagandista por não fazer esse chamado? A Tese da Terceira preocupa-se em não ficar apenas na propaganda, mas não orienta a criação de organizações de mulheres com esse objetivo, e sim indica:
“Para serem órgãos de ação e não somente de propaganda oral, as seções femininas devem apoiar-se nos núcleos comunistas das empresas e oficinas e designar, em cada núcleo comunista, um organizador especial do trabalho entre as mulheres da empresa ou oficina.”
E, para finalizar, essa orientação de Clara Zetkin, Lenin e da Terceira, ainda é correta na atualidade ou é necessário modificá-la diante de mudanças ocorridas até hoje?
Se analisarmos o grau de machismo nos sindicatos e no partido na época de Lenin, não podemos dizer que tenha sido menor do que na atualidade. Visto o baixo número de mulheres dirigentes sindicais e políticas naquela época e os entraves, inclusive legais, que em muitos países impediam a participação das mulheres, não há dúvida: o machismo era muito mais acentuado, e a situação da mulher, bem pior. Não por acaso, a tese da Terceira propõe:
“Admitir as mulheres como membros com os mesmos deveres e direitos que o restante dos membros do partido e de todas as organizações proletárias (sindicatos, cooperativas, conselhos de fábrica, etc.).”
Portanto, não vemos nada que justifique mudar a orientação organizacional da Terceira Internacional. O machismo divide a classe e obstrui a entrada das mulheres trabalhadoras no partido. Essa é uma das razões centrais pelas quais devemos enfrentá-lo de forma sistemática e permanente. Mas não podemos fazê-lo aprofundando essa divisão ao criar organizações permanentes separadas para as mulheres e para o restante dos oprimidos. Não podemos aplicar aqui o critério de “dividir agora para unir depois”, que, em determinadas circunstâncias, aplica-se para as nações oprimidas. Ao fazê-lo, cairíamos em uma orientação sexista. A organização separada das mulheres trabalhadoras enfraquece a classe e fragiliza a luta contra a opressão, pois faz com que os demais se desvinculem do problema com o argumento: “são coisas de mulheres, que se encarreguem as companheiras”. Ou seja, o oposto do aconselhado pela Terceira Internacional.